Observatório Psicanalítico – OP 221/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Lutos asfixiados em tempos de covid*
Roosevelt Cassorla (SBPCampinas e SBPSP)
A morte por asfixia por falta de oxigênio – como a que vem ocorrendo em Manaus e outras cidades – já era anunciada. Já a conhecíamos dos navios negreiros, dos massacres nas prisões, dos transportes coletivos superlotados, das habitações sem saneamento, da asfixia dos direitos humanos refletindo-se no sistema de saúde. Nessas situações, toda a energia é gasta na tentativa de respirar. Sem ar, grupos humanos são controlados quando buscam, apenas, sobreviver. A miséria, a desconfiança, a indiferença, a perversidade, a exclusão social, são “naturalizadas”.
Além dos evidentes traumas sociais, perguntamo-nos, como psicanalistas, quais os aspectos que permeiam os lutos individuais nessas situações.
Compartilho com os colegas relatos de pessoas enlutadas, por mortes causadas por Covid. Ainda não ocorriam asfixias por falta de oxigênio. O leitor reconhecerá vicissitudes peculiares do processo de luto no meio de uma pandemia: a impossibilidade de acompanhar e consolar o doente, o não poder despedir-se, a ausência de rituais fúnebres, as culpas pela contaminação, as múltiplas mortes, o negacionismo e as teorias conspiratórias, etc. Refletem também uma sociedade em que triunfa o descaso com a vida, o impedimento de tratamentos dignos, da prevenção indispensável e do necessário acolhimento psicológico e social. O luto fica sufocado, asfixiado, e a vida é travada.
Os pacientes estavam internados na UTI de um hospital universitário (HC-Unicamp) e os enlutados eram atendidos por equipes multiprofissionais que se valem do referencial psicanalítico. Transcrevemos trechos de relatos efetuados durante os atendimentos. Creio que dispensam comentários.
O corpo no “saco de lixo”
“Eu já entendi que minha mãe vai morrer, mas não quero que seja por essa doença. Não quero que seja enterrada em um ‘saco de lixo’.”
“Não queria ver minha mãe entregue na porta de um cemitério como se fosse um nada.”
“Minha mãe morreu e eu estava aqui internada (também por Covid). Não teve velório, missa de sétimo dia, nada. Fica uma coisa de “ouvir dizer”.
“Parece que não é realidade…”
“Sonhei que vi “ele” (o pai) presencialmente, no caixão… porque só tinha visto por foto. Acho que sonhei porque eu queria tanto ter visto… Parece que não é real. É estranho…”
“Queria que a ligação (de oferta de apoio emocional) fosse pra falar que não era ele que estava dentro daquele caixão, que era o corpo errado…”
“Não teve nada, nada! Disseram pra gente que o corpo só pode ser cremado depois de 48 horas e depois disso tem uma fila pra cremar e até 10 dias pra acontecer. Então a gente nem soube que horas e que dia foi… E nem bem onde ficou o corpo nesse tempo todo…. fica uma pendência, uma expectativa…”
A dor de não ter estado lá
“Ficou um vazio por ter ficado distante do tratamento da minha mãe.
Ela (a mãe) me dizia (por chamadas de celular, antes de ser transferida para a UTI): “a gente se sente um bicho enjaulado, daqueles que recebem comida por debaixo da porta”. Não tinha ninguém pra cuidar e eu não podia entrar lá.”
“Eles levaram minha filha do quarto só dizendo que precisava de isolamento e que eu tinha que ir embora. Eu disse que ficaria com ela no isolamento, não me importaria de pegar o vírus também, se fosse pra ficar com ela. Não deixaram. Não deixaram nem eu me despedir. Não sei como cuidaram dela nos últimos dias. Deram banho? Deram água? Comida? Escovaram o cabelo dela?”
“Fica aquela dor de não poder se despedir… de não ter visto mais, mesmo que fosse em uma cama de hospital. Talvez se eu soubesse que
ele não iria mais voltar, poderia ter falado algumas coisas… Mas no dia eu só dizia que ia dar tudo certo, que ele iria voltar logo. (…) poderia ter dado um abraço… depois não pude mais.”
“Eu queria estar com ele nesses dias que ele ficou internado. É muito triste não poder tocar, não poder ver. Trinta e três dias no hospital sem poder ver e quando sai, sai dentro de um caixão e você ainda não pode ver.”
Recriminação e culpa
“Não posso acreditar que ela (mãe falecida) tenha pegado essa doença!
Eu fiz tudo certo, tomei todos os cuidados… o que posso ter feito de errado?”
“A família fica toda pensando: quem passou pra quem?”
“Depois que ele morreu as pessoas culparam o meu irmão (falecido por Covid) por ele ter vindo visitar… Dizem que ele quem passou Covid pra todo mundo da família…”
“Eu levei minha mãe para a morte (por Covid, contaminação intra-hospitalar).Ela não queria ficar internada e eu insisti. O que eu sinto é culpa, remorso… eu queria poder voltar atrás. Agora me sinto culpada, mas também estou à caça de um culpado…”
“Só pegou no hospital porque é pobre, queria ver se fosse rico. Ia ter tudo limpinho e jamais pegaria essas coisas.”
Múltiplas perdas
“Covid de novo. Faz eu relembrar tudo o que aconteceu com o meu marido. Já veio um filme na minha cabeça, foi para a UTI não sai mais… Já nem senti nada quando outro familiar internou… Não tenho mais tristeza e nem felicidade… não vejo a hora de meus filhos crescerem para eu poder morrer.”
“Cheguei na SETEC (Serviço Funerário Municipal)) e me perguntaram: “você aqui outra vez?”. Falei: ‘Vocês acreditam? Em alguns meses enterrei três familiares…”’
“Antes tinha muita esperança no caso do meu pai… e depois que meu pai faleceu, perdi a esperança também no caso da minha mãe.”
“Antes tinha esperança de que todos iam sair com vida… Hoje já não sei mais…., estou com medo… são tantas perdas.”
A perda em um conflito de narrativas
“Sabe o que eu ouvi falar? Que se ganha quando alguém morre por Covid. Fui à padaria e uma conhecida me disse que ganham 16 mil reais por cada morto com Covid.”
“Ainda não acredito que foi de Covid, nem que me mostrem o papel agora. Mataram ela no hospital e colocaram isso para ganhar dinheiro.”
“Mandaram por Covid em todo mundo que morre. E tem caixão sendo enterrado vazio por aí. Meu cunhado queria desenterrar… A gente convenceu “ele” a deixar pra lá…”
(A equipe faz o contato dos pacientes isolados com seus familiares através de tablets)
“Eu vi e fiquei um pouco mais conformada de poder vê-lo no hospital…”
“Tudo o que eu queria era ter estado ao lado dela. Mas se não fosse a videochamada, não teria mais visto minha mãe viva. Não tem comparação com quando se está próximo, mas para mim foi melhor que nada.”
“Vi no vídeo. Deu uma vontade de atravessar a câmera e abraçar ele! Só de ver já aquece o nosso coração.”
A despedida possível
“No enterro meu esposo pegou uma foto, imprimiu e colocou no caixão.
Foi importante, a gente conseguiu sentir mais a minha mãe… Conseguimos nos despedir dela de uma maneira mais decente…”
Neste momento asfixiante, temos que nos cuidar para que nossos lutos não se transformem em melancolias suicidas. No mito da criação, a alma se constituiu através do insuflamento divino. Temos o dever ético de usar todos os meios para que essa criação não se perca.
*O trabalho original pode ser acessado em https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v23n3/1415-4714-rlpf-23-03-0509.pdf
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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