Vidas negras importam VIII: Juliano Moreira, um baiano que deixou rastros de luz no planeta

Observatório Psicanalítico – OP 220/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

 

Vidas negras importam VIII: Juliano Moreira, um baiano que deixou rastros de luz no planeta

Helena Daltro Pontual (SPBsb e SBPSP)

 

Cidadão ilustre, aliás, ilustríssimo. Um pensador nascido em Salvador (BA), em 1872, negro, pobre, filho de uma empregada doméstica ex-escrava, que enfrentou frustrações e dificuldades de toda ordem para captar os pensamentos de uma época e transformá-los em ações. Foi como Juliano Moreira se fez médico, fundador da disciplina psiquiátrica nas universidades e do ensino da psicanálise na Escola de Medicina da Bahia, mudando radicalmente o paradigma na assistência e no tratamento das doenças mentais no Brasil no início do século XX. Além de pioneiro na difusão das ideias de Freud, foi um dos únicos profissionais que aplicou a psicanálise em sua clínica e estimulou seus discípulos a estudar a nova disciplina, fazendo com que o Brasil tenha sido o primeiro país da América Latina a implantar o freudismo.

 

Foi o primeiro professor universitário brasileiro a citar e incorporar a teoria psicanalítica no ensino da medicina. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1886, com 14 anos, formou-se com apenas 19 anos e concluiu seu doutorado aos 22 anos. Um gênio precoce que foi bem aproveitado e ajudado por Luís Adriano Alves de Lima Gordilho, o Barão de Itapuã – seu padrinho e patrão de sua mãe –, que cedo percebeu a inteligência e precocidade do menino. O Barão era médico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, e, graças a seu apoio, Juliano fez cursos preparatórios para ingressar na instituição.

 

A mãe de Juliano, Galdina Joaquina do Amaral, morreu quando o menino tinha 13 anos. Depois dessa perda, Juliano foi perfilhado por Manoel do Carmo Moreira Júnior, um inspetor de iluminação pública português. Seu crescimento como profissional foi estupendo: Apresentou, em 1891, seu trabalho de formação do curso de medicina intitulado “Sífilis maligna precoce”, no qual relacionou sexualidade e doença mental; passou em primeiro lugar no concurso da Faculdade de Medicina da Bahia, em 1896, para lecionar a cadeira de moléstias nervosas e mentais; representou o Brasil em congressos internacionais em Paris, Berlim, Lisboa, Milão, Amsterdã, Londres e Bruxelas; e fundou, em 1905, a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, onde divulgou os trabalhos de Freud.

 

Também visitou asilos na Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Escócia, fazendo cursos e estágios sobre doenças mentais. Nessas viagens, Juliano aproveitou para se consultar com especialistas sobre sua própria doença: a tuberculose. Chegou a se internar num sanatório no Cairo, onde conheceu uma enfermeira alemã, Augusta Peick, de Hamburgo, com quem se casou em 1910, e a trouxe para viver com ele no Brasil.

 

Em 1903 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde dirigiu, daquele ano até 1930, o Hospício Nacional de Alienados, denominação recebida após a Proclamação da República (antes se chamava Hospício Pedro II). Nessa instituição, apesar de não ser professor da Faculdade de Medicina do Rio, recebia residentes para o estudo da psiquiatria, e aglutinou ao seu redor médicos importantes que atuaram na neurologia, psiquiatria, clínica médica etc. Entre esses destacam-se Afrânio Peixoto, Antonio Austregésilo, Franco da Rocha, Ulisses Viana, Henrique Roxo, Fernandes Figueira, Miguel Pereira, Gustavo Riedel e Heitor Carrilho. No período entre 1926 e 1929, presidiu a Academia Brasileira de Ciências, onde recebeu o físico Albert Einstein, que apresentou, em francês, conferência sobre o tema “A natureza da luz”. 

 

Consta que Einstein ficou impressionado com a personalidade, a inteligência e o trabalho de Juliano.

Como diretor do Hospício, humanizou o tratamento dos pacientes, acabando com grades nas janelas, uso de coletes e camisa de força; instalou laboratórios de anatomia patológica e de bioquímica; remodelou o corpo clínico, com entrada de psiquiatras, neurologistas e outros especialistas da área médica; e providenciou a formação de enfermeiros. Numa ousada atitude para a época, introduziu, em 1910, a técnica psicanalítica para tratamento dos pacientes. Também organizou registros administrativos e dados clínicos e estatísticos. Juliano alinhou-se às correntes que representavam a modernização teórica e prática da psiquiatria, filiando-se à escola de psicopatologia alemã e divulgando a obra de Emil Kraepelin – comumente citado como o criador da moderna psiquiatria –, com quem se correspondia.

 

Sua atuação institucional mudou o modo de enxergar os doentes mentais, e, graças a esse empenho, conseguiu que o governo aprovasse uma legislação federal de assistência aos alienados, promulgada em 22/12/1903. Sua extensa obra escrita abrangeu estudos nas áreas de sifiligrafia, dermatologia, infectologia e anatomia patológica, entre outras. 

 

Na área de doenças mentais, a que mais se dedicou, debateu a nosografia psiquiátrica e as histórias da medicina e da assistência psiquiátrica no Brasil. Seu especial interesse estava na chamada “psiquiatria comparada”, ou seja, as manifestações das doenças mentais em culturas diversas.

 

Também era uma voz discordante quanto a aspectos sociopolíticos e culturais da época, um dos quais atribuía a “degeneração mental” do povo brasileiro à mestiçagem, especialmente à população negra. Na luta contra o racismo e demais preconceitos, enfrentava a elite dominante e muitos dos colegas médicos, mas mantinha sua firme convicção de que para tratar dos problemas mentais era necessário também  combater o alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e educacionais adversas. No texto intitulado “A luta contra as degenerações nervosas e mentais no Brasil”, apresentado no Congresso Nacional dos Práticos, em 1922, Juliano disse:

 

– O trabalho de higienização mental dos povos não deveria ser afetado por ridículos preconceitos de cores ou castas.

 

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o movimento pelo saneamento rural no Brasil ganhou força, e um país desconhecido foi revelado por expedições governamentais e científicas, estas lideradas por Oswaldo Cruz. A famosa frase do médico Miguel Pereira, “o Brasil é um imenso hospital”, dita em 1916, marca o início desse movimento. Juliano Moreira corroborou essa nova visão sobre os problemas brasileiros – afastando suposições que rotulavam a mestiçagem e o clima tropical como senhores das desgraças do país – e fez coro com os cientistas que falavam do isolamento geográfico, de infestações por doenças parasitárias e da necessidade de campanhas sanitárias.

 

Pensador aberto e irrequieto, interessou-se pela psicanálise, leu as obras de Freud em alemão, língua que dominava, e passou a divulgar o freudismo nas palestras que promovia na Sociedade Brasileira de Neurologia. Em palestra proferida nesta Sociedade, em 24 de setembro de 1914, Juliano Moreira apresentou trabalho sobre a importância da psicanálise no tratamento das doenças mentais. Infelizmente, tal trabalho foi apenas lido e não publicado. Mas a atuação do médico gerou uma série de publicações dos que foram residentes no Hospício Nacional dos Alienados.

 

Seis anos depois desse acontecimento, Franco da Rocha publicou o livro O Pansexualismo na doutrina de Freud (1920). Numa resenha sobre esse livro, Juliano Moreira citou as palestras promovidas na Sociedade Brasileira de Neurologia e comentou, irônico, que a psicanálise era pouco conhecida no Brasil porque “em geral, os colegas, em obediência à lei do menor esforço, aguardam que as ideias e as doutrinas passem primeiro pelo filtro francês para que nos dignemos a olhá-las contra a luz”. Para Juliano, o principal papel da psiquiatria estava na profilaxia, na promoção da higiene mental. Ele procurava estabelecer claramente a relação sociológica entre os comportamentos característicos de uma sociedade que ainda não atingira o status de civilização ideal e suas consequências orgânicas para o desenvolvimento da doença mental.

Em meio a acalorados debates sobre Freud entre os médicos da época, Juliano Moreira afirmava que a psicanálise estava conquistando pouco a pouco novos cultores, não somente na Áustria, mas também na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Por esse motivo, achava necessário um movimento no Brasil que desse destaque à riquíssima contribuição de Freud e seus discípulos.

 

Embora a psicanálise tenha se expandido no país ainda dentro de uma ótica higienista, característica daquele período, foi esse começo que impulsionou a psiquiatria no decorrer do século XX e o reconhecimento da psicanálise como método terapêutico. Ao apresentar o trabalho sobre pansexualismo na obra de Freud, em uma aula inaugural da Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919, Franco da Rocha despertou interesse em um de seus alunos, Durval Marcondes, que viria a ser o fundador do movimento psicanalítico no país e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) – a primeira associação psicanalítica da América Latina, criada em 24 de novembro de 1927.

 

Assim como Durval Marcondes foi discípulo de Franco da Rocha, este foi residente do Hospício Nacional de Alienados, dirigido por Juliano Moreira, um vínculo que fez prosperar o movimento psicanalítico no Brasil. Juliano morreu no dia 2 de maio de 1933, no Sanatório de Correias, em Petrópolis (RJ), encaminhado por seu médico Miguel Couto para o tratamento da tuberculose já bem avançada. Não teve filhos biológicos, mas se dedicou de corpo e alma a criar filhos da ciência.

 

Pesquisas:

Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930) – Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz – (http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br);

Anais da Academia Brasileira de Ciências – Tomo V, n 2, junho de 1933, p. 81 a 97 (consulta on-line);

Oda, AMGR & Dalgalarrondo, P. Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico. Revista Brasileira de Psiquiatria, 22 (4): 178-179, 2000.

Castro, R. D. A psicanálise no tratamento das doenças nervosas e mentais . Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental, 23 (2), 2020;

Rios, A. N. I. Juliano Moreira: Modernidade e Civilização na Primeira República Brasileira. Revista eletrônica da biblioteca virtual Consuelo Pondé – N.3 Março 2016.

Torquato, L. C. História da psicanálise no Brasil: enlaces entre o discurso freudiano e o projeto nacional – Revista de Teoria da História, Ano 7. Vol. 14, n 2, 2015.  

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

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