Observatório Psicanalítico – 147/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
“Fique comigo”
Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP)
GEP São José do Rio Preto e Região
O livro “Fique comigo”, da escritora nigeriana Ayòbámi Adébáyò, lançado no Brasil pela editora Harper Collins em 2018, narra a história fictícia de um casal que opta pela monogamia em uma cultura polígama, mas tem como pano de fundo o cenário político e econômico real nigeriano entre os anos 1980 e 2000, marcado por diversos golpes de estado.
Yejide, a protagonista, vive seus dramas pessoais: a própria orfandade, a pressão social para que o marido tome outra esposa, a possível esterilidade, questões de perda e elaboração de luto, enquanto trabalha no seu salão de cabelereira e discute sobre assuntos cotidianos com as clientes: dicas de simpatias supersticiosas, religiosidade, fantasias sexuais, preocupação com os rumos políticos e sociais do país.
A personagem primeiro busca ajuda médica para tentar engravidar, mas vai sendo levada ao desespero pela pressão social (pois uma mulher casada tem que “dar um filho ao seu marido”) e começa a recorrer à religião, e depois a qualquer dica que alguém lhe dê, expondo-se a uma situação abusiva quando recorre a uma espécie de “João de Deus”, e em seguida desenvolve uma pseudociese (gravidez psicológica).
O livro mescla fragmentos da luta psíquica em que a personagem se culpa e se ataca por fatos da vida, a luta familiar, revelada em constantes disputas por poder e por fim a luta social, em que a população, cada vez mais vítima da violência tenta pedir proteção a uma polícia corrupta e impotente.
Há um trecho em que Yejide relata: “eu não podia imaginar que um dia os assaltantes nigerianos seriam tão ousados a ponto de escrever cartas para que as vítimas tivessem tempo de se preparar para seus ataques, que um dia se sentariam em salas de estar depois de estuprar mulheres e crianças e pediriam às vítimas que preparassem purê de inhame e caldo de egusi enquanto assistiam a filmes em videocassetes que, em seguida tirariam da tomada e levariam com eles.”
A narrativa faz pensar em como as esferas do íntimo e do social se entrecruzam, no desconcerto de situações em que o lugar que poderia ser ocupado por pensamentos e atitudes de luta social, cedem lugar ao cansaço, à dor e ao medo. Toda a energia psíquica é utilizada apenas para a sobrevivência, em tentativas de elaborar o luto.
Os personagens do livro ouvem pelo rádio as notícias de golpe de estado e pressionados até ao limite, têm pensamentos como: “fiquei no quarto, preocupada com como seriam os próximos dias. Quanto mais pensava nisso, mais eu desejava que Babangida (o ditador) conseguisse manter o poder, não porque gostasse de como ele governava o país, mas porque o status quo era o diabo que já conhecíamos. Se os oficiais assumissem o poder e realmente expulsassem os estados do norte, dentro de algumas semanas a situação provavelmente precipitaria outra guerra civil.” Ou seja, qualquer mudança é sentida como ameaçadora.
No livro, as situações escancaradas de violência são processadas da maneira que dá, e segue em clima de “a vida continua”. Assim como no Brasil, diante de um trauma que se segue a outro, a população, atônita e impotente, teme a realidade, mas também teme mudanças.
O indivíduo tem a necessidade vital de sentir algum prazer para se contrapor ao sofrimento que lhe é infringido e às vicissitudes inerentes à sua existência; os fatos e notícias violentos, geram sentimentos confusos. Inundada pelo desprazer, a pessoa sai em busca do prazer possível: em conecções arbitrárias, o senso crítico fica desconectado. O desvio de dinheiro público interessa, mas há que se ser salvo pelo resultado do futebol, pela cerveja, pela vida das celebridades, etc.
A indignação que deveria existir a respeito, por exemplo, das enchentes causadas por erro de planejamento urbano, o questionamento sobre as barragens que se rompem por negligencia administrativa, a não aceitação de uma polícia que assassina impunemente crianças e adolescentes. Enfim, o posicionamento diante de tantas outras manifestações de desrespeito à vida, acabam amortecidos enquanto a pessoa está em luta pela própria sobrevivência psíquica.
Assim, o espaço fica aberto para que discursos cada vez mais cheios de ódio contra a democracia sejam pronunciados por líderes políticos, sem qualquer constrangimento.
E nessa mistura, como aconteceu com a personagem de “Fique comigo”, resta a muitos apenas a opção de, à sua maneira, eleger e idolatrar seu próprio “João de Deus”, ou o “Messias”, que ao invés de milagre, promove o abuso.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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