Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – setembro/2021
No mês em que assistimos, indignados, embora não surpresos, ao presidente do país desfilar, na abertura da Assembleia Geral da ONU, seu indigesto repertório de mentiras e manipulações diversas e perversas da realidade – numa comunicação direta com sua base eleitoral e com a extrema direita internacional – celebramos o centenário daquele que representa o mais forte antídoto ao ataque à capacidade de pensar, nosso patrono da educação, Paulo Freire. Suas ideias nunca foram tão necessárias como nesse momento em que enfrentamos um governo negacionista, porta-voz de desmentida explícita de nossa história – associada à promessa de reescrevê-la redefinindo nosso passado de atrocidades militares como um ideal de democracia. Revolucionário em seu método que convoca o aluno a olhar, escutar e compreender a própria realidade, tornando-o capaz de reivindicar e exercer a sua cidadania, Paulo Freire nos estimula à irresistível subversão de iniciar este editorial por onde fechamos nossas publicações neste mês de setembro, ou seja, com o ensaio “Centenário de Paulo Freire (19/SET/1921 – 02/MAR/1997)”, de Dora Tognolli (SBPSP).
Ao compartilhar sua experiência e observações sobre o “método perigoso” de Paulo Freire, Dora não nos deixa esquecer a grandeza e o alcance do pensamento desse educador, aclamado nas melhores Universidades do planeta: “…Paulo Freire denuncia o processo de dominação e desumanização que atinge oprimidos, e propõe um caminho…”, pensando “a educação não como uma técnica, mas como prática de liberdade e acesso à condição de sujeito”. Através do uso da palavra e de sua representação como fonte geradora de diálogos e reflexões entre alunos e professores, o método promove movimento e transformação, tal como podemos encontrar “no método de livre associação criado por Freud, também considerado um método perigoso…”. Não é à toa que, após ser perseguido – e exilado – pela ditadura, seu pensamento crítico volta a ser atacado, em nosso país, por aqueles que estão submersos no obscurantismo do pensamento totalitário, avesso “ao debate de argumentos e ao diálogo construtivo que foi a razão de ser de Paulo Freire”. Por fim, a associação entre a Psicanálise e o método freiriano poderia, ainda, nos levar à reflexão sobre como trabalhar, em nossos institutos, uma transmissão que reforce cada vez mais o pensamento crítico, a pluralidade, a autonomia e o olhar para os temas relativos à cidadania.
Tocados pela força criativa da palavra, desembarcamos na sensível homenagem “Ao MAMBERTI, com carinho”, de Márcio Roque (SPBSP) e Flávia Teixeira (atriz, diretora e artista colaboradora da Avessa Grupa, Dual Cena Contemporânea e Grupo Redimunho de Investigação Teatral). Em forma de roteiro, a dupla de autores nos transporta para a cena teatral: ali se despedem de Mamberti e nos presenteiam com a vitalidade de sua arte. Em alguns trechos, temos a sensação de ouvir a sua voz, como quando os autores descrevem o que sentem quando ele contracena com Maria Esmeralda: “Enquanto ambos liam os textos, nós trocávamos olhares, admirados com o poder de suas falas e sentindo que o mundo, as estrelas e o tempo paravam para ouvir o soar do que era dito por eles”. No silêncio do consultório que é colocado no palco, contemplamos, da plateia, as muitas vidas que podemos experimentar se nos deixarmos atravessar pelo trabalho do artista e pela força da intepretação de suas palavras. Cenas de uma sala de análise…
Seguimos com a arte e o talento em nossa retrospectiva. Em “QUO VADIS”, Eduardo São Thiago Martins (SBPSP) traz seu olhar sobre o filme “Quo vadis, Aida?”, cujo roteiro retrata o massacre de bósnios muçulmanos em Srebrenica (1995). Da sala de teatro, nos movemos para a sala de cinema. E de novo, perdemos o fôlego e a voz, junto ao autor, quando ele nos descreve a crueza da angústia e do horror provocados pela perspectiva de extermínio daquele que se vê, sob o funcionamento do pensamento único de quem o ameaça, no lugar do estranho insuportável a ser eliminado. Fica ainda mais difícil respirar quando sabemos, como lembra o autor, que o genocídio bósnio, assim como o Holocausto, está sob a mira crescente de ataques negacionistas, o que faz do filme “um documento de memória imprescindível, por ser memória do presente”. Eduardo reflete sobre a tensão entre o familiar e o estrangeiro, remetendo-nos ao olhar psicanalítico que aposta “na sustentação introjetada do conflito e das ambiguidades”, onde “o suportar da diferença não passa simplesmente pela questão da tolerância, mas também pela ideia de uma sustentação da diferença”, e de como essa premissa deve estar presente na essência do fazer político. A política deve conter o contraditório, a articulação com “a representação conflituosa do mundo”. Do contrário, veremos atuações como as que “Quo vadis, Aida?” nos traz, que nos levam à imposição de um pensamento hegemônico excludente do direito à existência do outro, realidade dolorosa que conhecemos de perto. Como nos diz o autor, Srebrenica de 1995 pode estar aqui, ou em qualquer tempo, em qualquer lugar.
A grave ameaça que, novamente, o pensamento negacionista nos traz à nossa sobrevivência, agora focado prioritariamente no campo climático, recebe análise rica e contundente de Maria Luiza Gastal (SPBsb), no ensaio “VIVER O MUNDO, PENSAR O MUNDO, CUIDAR DO MUNDO: culpa e reparação em tempos de crise climática”. Malu desnuda o mecanismo psíquico que sustenta o contínuo e preocupante descaso em relação aos cuidados com o meio-ambiente, seja no Brasil, com o crescente desmatamento da Amazônia, ou em outras partes do mundo. “Os impactos da inação humana já são vividos na Terra…Por que agimos como se não soubéssemos de nada?”. Valendo-se do pensamento kleiniano que traz o convívio de forças antagônicas em nosso psiquismo e seu decorrente mecanismo de defesas, a autora destaca nossa dificuldade em enfrentar “o luto por um mundo que estamos destruindo”, e o quanto isso tem nos levado a estratégias defensivas diversas, desde o negacionismo ideológico a mecanismos como a negativa e a desmentida: “…vivemos, sobretudo, no mundo da desmentida, defesa mais organizada e permanente, do campo da perversão. Enquanto a negativa nega a verdade, a desmentida a distorce, afirmando que as mudanças climáticas acontecem, mas não acontecem. Com ela, reduzimos a ansiedade, a culpa e a vergonha, acionando sentimentos de onipotência e fazendo uma ‘gambiarra’ com a realidade”, onde não dependeríamos da Terra para sobreviver, onde não precisaríamos reconhecer as consequências de nosso consumismo desmedido. “Enfrentar a realidade das mudanças climáticas pressupõe força para encarar nossas destrutividade e dependência de Terra, e para reparar o dano que fizemos. Se tudo não pode voltar a ser como era, podemos impedir que piore”, aponta Malu, que nos convoca a lutar com a força da verdade e da esperança, “matérias da psicanálise”.
Concluímos nosso editorial com o texto de Renata Sarti (SBPRP), TEMPOS ÁRDUOS, onde a autora nos revela como a leitura dos ensaios publicados nesse Observatório a tem ajudado a pensar e a sonhar a experiência emocional de tempos tão difíceis como os que temos vivido, fazendo-se, ainda, a seguinte questão: “Em tempos em que nos vemos excessivamente bombardeados por ameaças concretas/subjetivas, imersos em verdades/mentiras, fatigados diante de uma sucessão de horrores indigestos, como cultivar o espaço de uma psicanálise viva?”. Ela mesma responde: “Acredito que a arte da escrita analítica seja um dos caminhos para manter nossa condição de pensar e, mais do que nunca, revela-se numa poderosa “arma”, numa forma de resistência a tantas turbulências compartilhadas”. Concordamos com Renata, e seu testemunho nos estimula a reforçar o convite para que nossos colegas sigam fazendo – ou passem a fazer – uso desse espaço com a contribuição de sua escrita e suas elaborações. Os textos acima comprovam a riqueza e a potência do pensamento psicanalítico para o enfrentamento de tempos tão árduos e sombrios.
Equipe Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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