Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – Maio/2021
Neste último sábado de maio, o Brasil descontente foi às ruas. Grande parte da população, apesar de concordar com o distanciamento físico por conta da Covid, que neste mês registrou mais de 460 mil mortes, decidiu participar das manifestações a favor do Impeachment e contra a política genocida com que o ocupante da presidência insiste em gerir a pandemia do coronavírus em nosso país. Apesar da forte reação ocorrida em várias cidades brasileiras, neste mesmo dia ele comportou-se, mais uma vez, como um “moleque”. Publicou nas redes sociais (Twitter, Facebook e Instagram) uma foto na qual aparece segurando uma camiseta com dizeres chulos, à altura dele: “Imorrível, imbroxável, incomível”, tentando produzir, mais uma vez, um deslocamento narrativo sobre o que se passa de fato no país.
Susana Muskat (SBPSB) publicou o texto UM CERTO TIPO DE FRATERNO, cuja leitura nos inquieta, desde seu início, a partir da questão: “O fraterno é um tema que parece ter ficado na moda. Seria isso expressão do Zeitgeist, produto da inquietação a partir de grupos horizontais que se formam ocasionando transformações e despertando perplexidades nos campos da política, da cultura, do social, da violência?”. Luiz Meyer (SBPSP), provocado, indica a leitura de Miguel Lago, na Revista Piauí, intitulado “Batalhadores pelo Brasil”.
Aqui, nos interessa trazer desse artigo de Lago sua análise dos micropoderes exercidos por brasileiros nas suas relações cotidianas, identificados com um certo tipo de populismo, “uma lógica política” utilizada pelo líder. “A extrema direita, ao contrário da direita tradicional, aparentemente leu Michel Foucault. Entendeu que o poder não está concentrado nas instituições políticas: está distribuído e presente em todas as interações sociais. O discurso de Bolsonaro é dirigido a todo aquele que tem poder, ainda que seja um poder dentro de uma situação subalternizada. É o dono da birosca que tem poder sobre o garçom, o pastor do bairro que tem poder sobre o fiel, o marido que tem poder sobre a esposa, o guarda da esquina que tem poder sobre o infrator, o motorista que tem poder sobre o pedestre e o ciclista, o cafetão que tem poder sobre a prostituta, entre tantos outros. Bolsonaro assobia para quem tem poder e sua mensagem é clara: não tenha medo de exercê-lo.”
Bem, indicamos enfaticamente a leitura deste artigo para todos que seguem pensando sobre o que se passa no país, com apoio até de alguns psicanalistas. Os de nossas instituições, ligadas à FEBRAPSI, contam no Observatório com um espaço rico de debates – alguns merecedores de tornarem-se conhecidos. Helena Pontual (SBPSP e SPBsB) escreveu o ensaio BRASIL VIVE REGRESSÃO CIVILIZATÓRIA, a partir de um consolidado de comentários de nossos colegas, também para deixar mais claro para o leitor ‘de fora’, que “como psicanalistas, devemos participar de espaços democráticos, defender a ciência, denunciar a iniquidade e a necropolítica, debater ideias e propostas, contribuindo, assim, para análises políticas e antropológicas dos fatos”. Helena ainda afirma que “o sentimento de indignação é um fato entre muitos brasileiros, pois o país vive uma tragédia das mais graves da história, com consequências econômicas (aumento da miséria e do desemprego), sociais (fome, bolsões de pobreza e abandono), políticas (corrupção e ataques à democracia) e psíquicas (luto, medo, depressão, ansiedade e negação). A pulsão de morte nunca esteve tão presente, assim como mecanismos psicóticos da personalidade, tais como arrogância, prepotência e negação da realidade”.
Nesta linha, de como pode “o pensamento autoritário se infiltrar nas instituições psicanalíticas”, Mariângela Kamnitzer Bracco (SBPSP) nos trouxe sua reflexão sobre O PENSAMENTO AUTORITÁRIO E AS INSTITUIÇÕES PSICANALÍTICAS. Ela inicia nos dizendo que acompanha “com muito interesse os textos e mensagens do Observatório Psicanalítico”. E afirma: “É um alento fazer parte dessa rede solidária de psicanalistas que, entre outros assuntos, reflete sobre o terrível momento que vivemos. A circulação de ideias torna essa realidade um pouco mais compreensível, suportável – e convoca à resistência!”
Como atos de resistência, as ruas ocupadas por muitos brasileiros e brasileiras neste sábado trouxeram o apoio à instalação da CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – que investiga a atuação do governo federal na gestão da crise da pandemia da Covid, em especial seu “desinteresse” na obtenção de vacinas que pudessem conter a propagação das mortes entre seus cidadãos. Nas ruas, a população trouxe “palavras de ordem” desejantes de que o movimento impetrado pelo senado brasileiro não seja inócuo.
Muitos de nós, diante das falas dos convocados a depor na CPI, estamos perplexos com as narrativas de alguns membros – ou ex-membros – do governo federal, que não somente ludibriam a verdade, em muitas vezes, como, em tantas outras, nos revelam um “cumprimento de ordens” em total descompromisso com o seu dever de cuidar da vida de seus cidadãos. Uma cena que nos faz lembrar, como aponta Michel Gherman em vídeo recente de seu canal, a subordinação de Eichmann aos desmandos perversos de seu chefe.
Nosso colega Pedro Colli Badino de Souza Leite (SBPSP) escreveu um belo texto nomeado ESBOÇO DE UMA METAPSICOLOGIA PARA A VACINA. Pedro inicia sua escrita concordando que vivemos no País “ao menos duas crises. A primeira, sanitária, provocada pela pandemia do Sars-Cov-2. A segunda, política, onde o atual governo trabalha ativa ou passivamente contra os instrumentos de combate à Covid-19 e em favor da desinformação dos brasileiros.” E traz dados que corroboram que “o surto de desinformação atinge de forma mais contundente as pessoas mais pobres e à margem de nossa sociedade”. “E, segue afirmando que “o ato da vacinação ainda enfrenta outros obstáculos em nível metapsicológico, que ampliam e agravam os efeitos de tais crises” e que podem ser analisados “não apenas do ponto de vista imunológico, mas também daquele dos processos inconscientes profundos, que muitas vezes representa uma alteridade ao Eu”. A partir daí, Pedro nos oferece uma precisa elaboração psicanalítica sobre a “alteridade-persecutória” do que pode ocorrer com as mentes de corpos vacinados. E, como sabemos, “na clínica psicanalítica e de sua teorização, a categoria de alteridade-não-persecutória só pode ser alcançada depois de uma monumental travessia do narcisismo, e sua conquista é sempre provisória.”
E Pedro, na conclusão de seu ensaio, nos ajuda a pensar sobre sofrimento subjetivo e coletivo que vivemos ao afirmar que “Quando a alteridade se encontra enfraquecida, o Eu se espalha como uma mancha de óleo no oceano, e com frequência temos apenas reações imunológicas radicalizadas ao outro. Será apenas na medida em que pudermos nos sensibilizar para estas questões – tomando conhecimento de nossos desejos e tendências a eliminar o não-Eu – que talvez possamos nos abrir para a alteridade, seja nas relações humanas, seja no ato de vacinação.”
Neste processo de permanente construção e exercício de nossa alteridade, lembramos, com satisfação, que nossa série “Vidas Negras Importam” completa um ano, e que neste mês publicamos seu 12o. ensaio: A BRANQUITUDE EM CENA NO CURTA METRAGEM ‘DOIS ESTRANHOS, de Rafaela Degani (SBPdePA), onde a autora aponta, com sensibilidade, o racismo estrutural brasileiro. Rafaela nos mostra que os diretores deste filme trazem “uma clara homenagem a George Floyd”, cidadão norte-americano morto nas mãos da tão conhecida “violência policial” (o que sabemos não ser uma exclusividade estadunidense), uma “compulsão à repetição mortífera protagonizada pelos brancos contra os negros”. Destaca, ainda, o pensamento da artista Grada Kilomba que nos faz ver que é sob “a dinâmica racista que o negro se constitui como Outridade do branco. A autora explica que todo conteúdo recalcado, ou seja, a sexualidade e a agressividade que o sujeito branco não deseja ver em si, projeta sobre o negro. Existe nesse jogo uma dupla prisão: ao negro não é permitido existir para além das projeções do branco, enquanto o branco fica alienado de si mesmo acreditando-se melhor do que de fato é.” E conclui seu ensaio reafirmando que “Estudar o racismo, a branquitude e seus efeitos, é tarefa fundamental para o psicanalista”.
Para celebrar a luta antimanicomial, neste mês de maio, convidamos Luciana Saddi e Maria de Lurdes S. Zemel (SBPSP) – que organizaram um livro sobre o tema da Maconha – para escreverem um texto pois, para nós, trabalhadores da saúde, o tema merece nossa atenção e compromisso com o conhecimento científico, geralmente “debatido com preconceitos, falsas certezas, ignorância e paixões”. Assim, em a MACONHA E CONTROLE SOCIAL DA ‘LOUCURA, as autoras, nos trazem importantes artigos de vários colegas do campo. A maconha, afirmam, “descriminalizada em diversos países, tem obtido crescente aprovação para uso recreativo e ou medicinal. A política de guerra às drogas tem se modificado, fracasso e equívoco nessa direção se tornam a cada dia mais evidentes. Entretanto, o Brasil permanece paralisado no debate da descriminalização das drogas, e continua a promover a internação compulsória, em vez de adotar a Política, já existente, de redução de danos e riscos.
E, por último, lembramos que a primeira celebração do mês, em nosso OP, se deu com a publicação das palavras de nosso colega Ney Marinho (SBPRJ), “uma leviana prosa”, como ele nos disse, intitulada PRIMEIRO DE MAIO. Também com tristeza não vimos “qualquer manifestação da grande mídia”, sobre esta data, sempre “tão atenta às tragédias como às banalidades da vida – sem distinguir o que importa do que é lastimável ou sequer insignificante. O Primeiro de Maio tem uma longa tradição de luta dos trabalhadores, das mulheres principalmente, pela redução das horas de trabalho, pela luta contra o trabalho infantil e, no nosso meio, pela luta contra o que hoje chamamos, com razão, de trabalho escravo, dadas nossas origens escravocratas.”
Concluímos nosso editorial refletindo como nós analistas precisamos avançar nos nossos posicionamentos contra a gravidade sociopolítica brasileira em que fomos jogados: as narrativas de um governo federal que aposta na destrutividade da vida; na destruição das nossas instituições, ocupadas hoje por pessoas descomprometidas com um estado de bem-estar social; na destruição de nossas riquezas naturais, com tudo que a biodiversidade que a Amazônia produz; a violência impetrada pelo racismo que segue como causa-morte de uma enorme população. E, de nossa parte, responder institucionalmente, como estão fazendo algumas de nossas sociedades (SBPRJ e SBPdePA), que já nos mostram caminhos na construção de uma psicanálise descolonizada.
Equipe Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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