Editorial – Observatório Psicanalítico – junho/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Editorial – junho/21

Meio milhão de mortos. Meio milhão de famílias destroçadas pela dor de uma morte antecipada. Revolta. Indignação. “E daí?” 

Depoimentos em Comissão Parlamentar de Inquérito confirmam a condução errática, criminosa e corrupta do governo federal frente à pandemia do novo coronavírus. Indiferente, o capitão que ocupa o cargo de presidente do país convoca passeio coletivo em “motociata” – com direito a aglomeração sem máscara e capacete –  uma provocação que ignora nossas instituições, que atua, mais uma vez, o sonoro e debochado “e daí?”. 

E daí? Retrato do abismo que se instalou em nosso país, da fenda que nos cinde entre a dor lancinante e o descaso, entre a civilização que reverencia e respeita seus mortos e seus rituais de despedida e a indiferença da barbárie, a resposta, em abril de 2020, à interpelação de uma repórter que questionava o aumento do número de mortos – dada justamente por aquele que deveria estar à frente do cuidado de sua população – é reveladora do adoecimento a que sucumbimos e que nos fez capazes de eleger uma liderança perversa, transparente em seu funcionamento totalitário de ataque ao contraditório: o que não é idêntico é visto como síntese do inimigo a ser eliminado. Que fragilidade é essa que nos levou ao pai primevo da horda primitiva, àquele que com o livre exercício de sua destrutividade e oposição corrosiva às nossas instituições ameaça a nossa própria sobrevivência? Onde foi possível a sensibilidade à dor do outro se apagar e ser ofuscada pela banalização da tortura, do racismo, da homofobia, da misoginia, da prática desmedida da intolerância? Que anestesia é essa que vem mantendo um projeto genocida no poder? Estaríamos perdidos no emaranhado narcísico das massas em busca de um líder salvador e onipotente ou, ainda, tomados pela incapacidade reflexiva do homem comum, como diria Hannah Arendt, que assume seu lugar na engrenagem mortífera da mente totalitária e se deixa seduzir pela ilusão de satisfação que lhe prometem as falsas narrativas? 

Estas e outras tantas questões têm dado corpo ao nosso espanto e angústia diante do desamparo que tanto o ataque ao pacto civilizatório como o trauma coletivo experimentado nesta pandemia têm nos trazido e, neste espaço de discussão que é o OP, temos testemunhado o empenho de psicanalistas na tentativa não somente de elaboração e compreensão de nossa perplexidade enquanto cidadãos, como também na construção de vias que fortaleçam a possibilidade de acolhimento dessa dor e de reconhecimento de nossa própria subjetividade. 

Assim, abrimos o mês com o relato sensível e tocante de Eliane Nogueira (SBPdePA) em UBUNTU – “EU SOU PORQUE NÓS SOMOS”: Projeto de acessibilidade a negros e negras à formação analítica na SBPdePA, em que, de forma corajosa, nos traz sua própria experiência na percepção do racismo estrutural e institucional presente em nossas relações e a evolução das discussões sobre o projeto-título de seu ensaio, comunicando-nos, com imensa alegria, sua aprovação por unanimidade, revelando-nos, ainda, a riqueza simbólica trazida no nome do projeto, UBUNTU: “inspirado na filosofia africana cuja essência valoriza o respeito e a solidariedade entre as pessoas. Trata da importância de alianças e do relacionamento entre pessoas, da humanidade para com os outros, cria a ideia de coletivo para as conquistas humanas (‘eu sou porque nós somos’)”. Inspiração bem-vinda e necessária que esperamos que se multiplique! 

Bernardo Tanis (SBPSP), em “SAÚDE MENTAL NA PANDEMIA: Desafios para uma Articulação Nacional no Enfrentamento à Pandemia”, é contundente ao apontar o potencial danoso que os desmandos da política negacionista do governo federal oferece à saúde mental de nossa população, tomada, diante de realidade “tão avassaladora”, por sentimentos de angústia, desamparo e impotência; e nos relata como muitas de nossas instituições de psicanalistas têm se organizado, através de redes e plataformas de atendimento online, para a oferta gratuita de espaços de escuta “para todos os profissionais envolvidos no tratamento da COVID que  os procuraram. Continuamos parcerias e convênios com comunidades mais carentes, orientamos professores de escolas públicas e privadas, famílias, etc. Criamos redes de assistência nas quais a solidariedade, o amparo e a empatia podem contribuir para diminuir o impacto traumático e desestruturante consequente ao acontecimento tão devastador”. 

Uma rede de solidariedade vai se constituindo. Às manifestações de ódio e violência, seguimos resistindo através da compreensão de que é preciso reforçar nossos laços atados pela pulsão de vida. O ensaio “ESTAMOS OUVINDO: um ano de trabalho voluntário”, escrito por Cristiane Paracampo Blaha e voluntários do E.O. – SBPRJ, traz o testemunho de mais um projeto de atendimento gratuito oferecido por psicanalistas para a população em geral: “em nossas reuniões quinzenais discutimos os casos e estudamos, na contramão de tanta destruição, tentando construir algo, cimentando-nos uns aos outros no amor à psicanálise e na necessidade de sobrevivermos, emocional e profissionalmente, como psicanalistas…prosseguimos nos reinventando como cidadãos e psicanalistas”. 

O olhar agudo de César Augusto Antunes ( SBPdePA) dá voz à perplexidade que nos causa a potência da destrutividade humana. No ensaio GENOCÍDIO ele nos lembra que, “há pouco mais de 60 anos, Adolf Eichmann era julgado em Jerusalém por crimes contra a humanidade”, um evento que atraiu particularmente a atenção de Hannah Arendt e que a levou, com a originalidade e força de seu pensamento, a formular o conceito de “Banalidade do Mal”, expresso em “comportamentos que, em sua essência, não carregam expressões de ódio ou prazer com o sofrimento alheio”, mas sim a indiferença, “a insensibilidade com o outro” e, acima de tudo, a recusa a pensar, a diferenciar “o real do fictício, a verdade das ‘fakenews’”. César Augusto destaca, nas palavras de Arendt: “Eichmann nunca percebeu o que estava fazendo…esta distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos”. Hoje sabemos que a recusa ao pensar – própria do totalitarismo –  e sua consequente obediência burocrata às ordens superiores foram fundamentais para que a máquina do genocídio de 6 milhões de judeus e de outras minorias, como os homossexuais, negros e ciganos, pudesse ser posta em marcha na Alemanha do Terceiro Reich. Temos visto a reprodução de códigos linguísticos nazistas por parte de nosso presidente e seus seguidores. Até que ponto estaríamos reproduzindo, em nosso país, atmosfera semelhante de intolerância, ódio e adesão fanática ao pensamento único? “Precisamos nomear, e nomear, e nomear a violência toda vez em que ela se apresentar. Incansavelmente. Principalmente a violência da indiferença…o extermínio de populações por falta de assistência, alimentação ou vacinas se chama genocídio”, continua o autor, que conclui apontando para a contribuição do trabalho analítico na luta da civilização contra a barbárie quando este desenvolve o pensar de nossas experiências emocionais, o reconhecimento de nossa própria violência. 

É sobre a formação do psicanalista que Ana Cláudia Zuanella (SPRPE) irá discorrer no texto “Tornar-se psicanalista pela IPA”, chamando atenção deste rigoroso processo que envolve análise pessoal, seminários teóricos e clínicos, atendimentos supervisionados, escrita de trabalhos e relatórios, onde “conhecer nosso próprio funcionamento interno é condição fundamental para podermos ouvir o outro”. Preocupada com a profusão de cursos que prometem uma formação rápida e de pouco engajamento com o rigor teórico e clínico, a autora ressalta que “uma formação leva tempo, exige empenho e dedicação”, reafirmando a necessidade de se esclarecer sobre o quê “consiste uma formação psicanalítica nos moldes da IPA, quais as exigências e qual o percurso para alguém começar a prática da psicanálise”. 

Neste mês em que se celebra a luta pelos direitos das pessoas LGBTQ+, foi com enorme satisfação que recebemos o ensaio “SÓ NÃO VALE DANÇAR HOMEM COM HOMEM, NEM MULHER COM MULHER”, de Ian Favero Nathasje (SBPdePA). De forma brilhante e corajosa, o autor nos brinda com a crítica – urgente e necessária – ao posicionamento conservador da psicanálise diante da sexualidade não binária e não normativa, convida-nos “a pensar a teoria a partir de apresentações da sexualidade e de gênero que sempre estiveram presentes, mas que hoje não aceitam mais serem deixadas de lado”. Na legitimação e afirmação de sua sexualidade, Ian resgata e encarna o desafio maior da psicanálise, a luta pelo direito à própria subjetividade através do reconhecimento de nosso mundo interno, no trabalho analítico que encoraja-nos a exercer a potência libertadora e revolucionária de sermos quem somos: “a ideia do orgulho é potente porque marca a não aceitação da vergonha, do pedido para existir, do não lugar na sociedade. Marca, na minha opinião, a diferença radical, a aceitação da diferença de forma inegociável, a aceitação daquilo que faz parte de cada um de nós”. Em meio às inúmeras manifestações de ódio e intolerância racistas e LGBTQfóbicas, iniciativas como a de Ian Favero Nathasje ou projetos como o relatado por Eliane Nogueira trazem-nos o movimento e a possibilidade de mudança que tanto ansiamos como psicanalistas e cidadãos. 

No dia em que mais um pedido de impeachment – assinado por políticos de partidos diversos, desde o campo progressista ao conservador – é protocolado na Câmara dos Deputados, encerramos o mês de junho com “O IMPERATIVO CATEGÓRICO É FORA BOLSONARO”, de Valton de Miranda Leitão (SPFOR). O texto traz o clamor à luta que devemos fortalecer e encampar em nossas ruas, rumo ao movimento do impeachment, especialmente após os inúmeros escândalos que vêm sendo relatados na CPI da Covid-19. O autor defende que “estamos em face de um gigantesco esquema mercadológico para suprir, com dinheiro roubado do povo, o caixa da campanha presidencial de Messias que se autoproclama mito”, sustenta que “o enfrentamento desse poderoso conjunto somente pode ser feito com uma frente ampla, como aquela das Diretas Já que derrotou a ditadura militar”, e conclui: “A trágica situação sanitária, moral, e política brasileira é agravada por um governo que pôs a ética de cabeça pra baixo. É necessário que a bandeira nacional seja assumida como símbolo da ética que representa a preocupação com todo o povo brasileiro”. Sabemos que os crimes em série que vêm sendo cometidos pelo presidente ameaçam fortemente nossas instituições democráticas, ferem os direitos fundamentais de nossa população. Unir nossas forças em amplo espectro político em prol da defesa de nossa Democracia é fundamental, seja nas ruas, seja nas urnas que registrarão nossa escolha em 2022. 

Hannah Arendt costumava dizer que é preciso “pensar sem corrimão”, exercer a liberdade capaz de produzir o novo. Freud e outros pensadores juntaram-se a ela e assim o fizeram. O anseio por mudança e construção de novas subjetividades que tragam solidariedade, tolerância e acolhimento às diferenças e à dor do outro é um denominador comum dos textos que compõem este editorial. Que a contribuição do olhar psicanalítico possa nos fazer mais livres, ousados e criativos na busca pela realização de nosso desejo de compreensão do mundo e engajamento na luta por sua transformação.

Equipe Curadoria

Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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