Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 21
Janeiro/2022
Registrado como o ano de maior letalidade na história do país, 2021 carrega os sulcos da dura travessia de nossas perdas cravadas neste terreno pedregoso que é nossa imensa desigualdade social; vimo-nos agredidos pela condução nefasta de um projeto político que tem, como estratégia para sua permanência no poder, fomentar o ódio e a intolerância ao outro; o ataque ao conhecimento, à memória e à informação.
Ao revisitarmos os ensaios publicados neste mês de janeiro, incorporando a vocação do “só depois” deste editorial, nos surpreendemos – ou não – com um denominador comum, um fio condutor movido pela arte, pela literatura, pelo amor, pela esperança de transformação, resistência e solidariedade. Inspiradas, talvez, na beleza das notas de Nelson Freire – que, “tocadas” aqui em dezembro por Daniel Senos (SBPRJ), seguem ressoando em nossos ouvidos – iniciamos o ano de 2022 apostando na força estética da pulsão de vida como a tonalidade predominante em nossa luta pelas mudanças tão necessárias ao nosso país.
Em nossa primeira publicação, o ensaio “Com Vergonha”, OP 289/2022, de Celso Gutfriend (SBPdePA), nos apresenta José Falero e a potência de suas crônicas, reunidas no livro “Mas em que mundo tu vive?”. Seus textos, a partir do vértice dos habitantes da periferia, negros em sua maioria, são “um soco no estômago dos brancos”, e “se você é um desses brancos, torna-se inevitável, já a partir das primeiras páginas, um sentimento de vergonha…”. Celso convoca o constrangimento de uma branquitude que se acomoda na invisibilidade do outro desfavorecido socialmente, e aponta que, paradoxalmente, é justamente nessa “vergonha”, provocada pelo impacto da arte de José Falero, que reside a possibilidade de transformação. Nos juntamos a ele e damos boas-vindas a esta vergonha, endossamos o coro de que é preciso conhecer a nossa branquitude e possibilitar caminhos alternativos ao redemoinho de preconceitos e desigualdades do nosso país.
Bernard Miodownik (SBPRJ) e Joyce Goldstein (SPPA) nos convocam, em “NÓS E O MUNDO: Uma Vasta Experiência”, OP 280/2022, para o congresso virtual de Psicanálise que a FEBRAPSI promoverá em março deste ano (23 a 26 de março), com o tema “Laços: o Eu e o mundo”. Em tempos de pandemia e de traumas coletivos, observam que, provavelmente, nunca antes na história dos congressos FEBRAPSI o mundo se fez tão presente em sua organização: “algo se modifica quando o mundo troca o norte – para nós, não para ele – e nos desnorteia”. Será uma oportunidade ímpar para nos debruçarmos, com a sensibilidade do olhar psicanalítico, nas relações entre o eu e o mundo, para desvelar, inclusive, aquilo que nosso narcisismo mantém, tantas vezes, invisível. Num encontro que reunirá representantes de todas as regiões do país e suas federadas, psicanalistas latino-americanos e representantes de outras filiações ou de outros campos de saber, o evento servirá para, “conjuntamente, avaliarmos as experiências traumáticas que continuamos a passar e olharmos para o futuro que já está presente”. (O link com o Guia da Programação Científica do congresso poderá ser encontrado ao final deste editorial).
“Ah! O amor…’Niketche – uma história de poligamia’, de Paulina Chiziane”, OP 291/2022, escrito por Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e GEP São José do Rio Preto e Região), leva-nos ao mundo das relações – na cultura moçambicana – retratado na obra de Paulina. Estruturadas inicialmente pela poligamia e depois submetidas ao regime monogâmico adotado pelo colonizador, estas relações serão exploradas pelo livro que Vanessa generosamente nos apresenta, um livro “que fala sobretudo de amor, sexo e desamparo”. Da mulher “ora em carne viva na sua dependência e desespero, ora revestida por uma força imensurável na luta pela sobrevivência”. As vicissitudes do amor e suas conquistas, tão bem trabalhadas por Paulina, conforme testemunho de Vanessa, nos enchem de curiosidade sobre a obra, trazendo uma promessa amorosa de esperança para o enfrentamento ao ano que se inicia: “vale deixar-se invadir pelo amor destilado a cada página pela potência dessa mulher negra, pobre e que se apresenta nua e desarmada. Um descanso na loucura cotidiana”.
Em “Breves considerações sobre a pandemia que nos vive”, OP 292/2022, José Alberto Zusman (SPRJ) discorre sobre a nossa vulnerabilidade e impotência diante da realidade pandêmica que se impôs sobre todos nós, ao mesmo tempo em que aponta para o quanto a nossa dramática desigualdade social e desequilíbrio ambiental não nos deixa outra alternativa senão o desenvolvimento da solidariedade e consciência coletiva, abrindo, portanto, um campo de possível transformação: “A desigualdade social mata! Em nome da nossa sobrevivência precisaremos mudar nossa relação com o próximo e com o nosso planeta(…)descobrir que estamos todos juntos e não temos para onde ir, pode ser libertador ao possibilitar a mudança da nossa visão de mundo…”. Uma aposta na nossa capacidade de empatia e transformação.
Seguimos conduzidas pelo fio da arte ao nos depararmos com o olhar sensível e preciso de Selma T.O. Fernandes Jorge (SBPSP) sobre o filme “A negação”, no texto “Negação…eu posso encarar a verdade?”, OP 203/2022, nossa última publicação desse mês. Impactada pela força da linguagem cinematográfica, Selma nos contagia e nos remete ao tema da negação do Holocausto precisamente na data em que se celebram os 77 anos de libertação das vítimas do campo alemão de extermínio de Auschwitz, localizado na Polônia. Em tempos em que o negacionismo histórico e científico são adotados como política de estado, em que o discurso racista, homofóbico, misógino e antissemita encontra ressonância no recrudescimento de grupos neonazistas no Brasil – em especial a partir de 2018 -, a discussão trazida pela autora, mais do que oportuna, é urgente e necessária. A autora nos transporta para os “labirintos da desrazão”, onde “negar passa a ser um esforço para manter oculto o que não pode ser aceito”. O debate que ela destaca entre os protagonistas revela, ainda, que “as evidências da verdade, outrora sepultadas junto às vítimas, passam a ser resgatadas, e com elas o escorregadio piso da arrogância, da superioridade e da ‘negação’ começa a sofrer rachaduras”. E prossegue, na ponte que faz com o campo psicanalítico: “diante de suas ‘invenções’, o negacionista não nega a história apenas, mas a si mesmo”; não basta lembrar do passado, “é preciso compreendê-lo no caminho da libertação identitária, ser e permitir que o outro seja diante da turbulência do encontro”.
Reflexão fundamental para pensarmos a nossa identidade não apenas como indivíduos, mas como país, um país onde o negacionismo e a intolerância agora intensificada e autorizada se misturam ao genocídio de negros e indígenas que testemunhamos desde os primórdios de nossa história. A máquina da morte em escala industrial que se instalou em Auschwitz foi resultado de décadas de fermentação do ódio e de teorias conspiracionistas e racistas, pessoas comuns a construíram, seduzidas pelo discurso de que haveria um outro, depositário de todo ‘mal’, a ser eliminado. Mais importante ainda do que lembrar do Holocausto, é entender o caminho que levou a Alemanha ao nazismo e aos campos de extermínio, é olhar atentamente para o nosso processo histórico para que não corramos o risco de reproduzir, em versão contemporânea, a reeleição daquele que não reconhece o direito à diferença.
Finalmente, lembramos que, às quintas-feiras, nossa página no Instagram tem trazido textos do Observatório Psicanalítico a título de #tbt (para utilizar a linguagem própria do perfil). Neste mês de janeiro, destacamos dois ensaios: “A luta contra a pandemia tem rosto de mulher” (OP 164/2020), de Gabriela Seben, Juliana Lang Lima e Rafaela Degani (SBPdePA), onde as autoras abordam a perspectiva do feminino no combate à pandemia – a exemplo do trabalho eficiente de algumas líderes mundiais no enfrentamento da atual crise sanitária – e “Outra vez ‘o olho da serpente'” (OP 169/2020), de Cláudio Eizirik (SPPA), texto que também nos traz importante reflexão sobre a negação e a falta de ética, no período do nazismo, que nos levaram ao genocídio de milhões de judeus.
Equipe de Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi, Rafaela Degani e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Segue o Link do Guia de Atividades do 28o. Congresso Brasileiro de Psicanálise – breve roteiro:
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