Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 22
Fevereiro/2022
“(…) Era madrugada e o silêncio tomava conta daquela rua deserta. Ameaçada, colocava a mão no bolso. Não encontrava a máscara – envergonhada, tampava a boca. Era carnaval e eu estava só, perdida, não sabia como voltar para casa. Observava a cidade silenciosa. Sentia um medo brutal.”
O fragmento de sonho é de Helena Cunha de Ciero (SBPSP). Mas a cena soa familiar a todos. O relato ecoa muitos sonhos que nos tem sido contados em nossos divãs ou telas de notebook, e também os nossos próprios. Analistas, analisantes e todos aqueles que sonham, imersos em uma mesma circunstância de desamparo, estamos sujeitos a nos deparar com a precariedade de todo e qualquer sistema de proteção de que possamos lançar mão – seja para fazer frente ao pulsional, seja para nos proteger do mundo – tal qual a mão que, sem encontrar máscaras nos bolsos, tenta tampar a boca.
Em “Quero de novo cantar” (OP-297/2022), transitando pela ladeira do Pelourinho entre o estado onírico e o de total lucidez, Helena nos conta de uma civilização em ruínas que, por tristeza ou decência, esse ano não fez samba. “Não faria sentido sambar na cara das 638 mil famílias enlutadas. Não há mais samba, há um dia-a-dia no conta-gotas. Fevereiro segue em dias desritmados, numa marcha lenta de deserto de tártaros resignados, de uma nação desprotegida que conta os dias até outubro.”
Fevereiro, o mês que, tempos atrás, começava com a beleza exuberante da festa de Iemanjá, e era atravessado de ponta a ponta pela alegria do carnaval, dessa vez passou violento e sombrio.
Era 31 de janeiro quando o assassinato brutal de Moïse Kabagambe foi veiculado pela grande imprensa. Se, no sonho, Helena tampava a boca envergonhada, nos primeiros dias de fevereiro tampávamos a boca de assombro e náusea diante das imagens do garoto sendo amarrado e espancado até a morte, e do seu corpo restando amarrado à escada, enquanto o quiosque Tropicália seguia operando normalmente na orla da Barra da Tijuca. Contusão pulmonar hemorrágica, e broncoaspiração de sangue.
Tocadas, Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e GEP Rio Preto e regiões) e Gizela Turkiewicz (SBPSP) escrevem “A pele de Moïse pelo avesso” (OP-294/2022), dialogando com o romance de Jeferson Tenório “O avesso da pele”, e nos lançam perguntas cruciais: “Diante do assombro, ainda é possível falar sobre literatura? (…) o que são as palavras diante das pauladas, da tortura, da crueldade? Por outro lado, o que nos resta na luta pelo direito à vida senão nos manifestarmos através de ações e palavras?”
Não será justamente nos momentos em que nos faltam as palavras que dizer alguma coisa – ainda que emitir um grito disforme ou um som gutural – se faz ainda mais urgente? As autoras, como Jeferson Tenório, vão muito além disso. Mantém a capacidade de pensar e encontram a ficção e a poesia para construir manifestos potentes, reafirmando a importância e o valor da palavra para alinhavar os fatos e tecer o campo do político. O espancamento de Moïse não é um fato isolado. É urgente combater o racismo estrutural e o extermínio da população negra. “(..)tudo é permeado pela cor: até uma breve saída de casa, que no livro e na vida pode terminar em confusão, violência e assassinato. O espanto é sempre o sangue vermelho que escorre do corpo negro manchando as ruas”, apontam as autoras entrelaçando a ficção de Jeferson Tenório e o real das mortes de Moïse e de incontáveis pessoas negras vítimas de assassinato no Brasil. “As raízes escravocratas não são ficção.”
Ainda na primeira semana do mês, em meio à avalanche da variante ômicron no Brasil, na precária contagem que nos é possível dos dados epidemiológicos, cruzamos novamente a marca dos mil óbitos por dia por COVID-19. Capaz de contagiar a população vacinada, porém mais branda, a variante nos fez estremecer diante da possibilidade de novas variantes que possam tornar as nossas várias camadas de proteção tão frágeis quanto a mão na boca.
Nessa circunstância assistimos à maciça sabotagem à vacinação de crianças em que se empenhou o governo federal e sua massa ensandecida de apoiadores. Observando uma sucessão de ações dessa natureza, Luiz Meyer (SBPSP) cunhou o termo “Eutanásia indireta” (OP-295/2022) para descrever o que percebe como uma política de Estado que nem protege, nem se omite: empurra os cidadãos em direção à morte em meio à pandemia de Coronavírus. “(…)o incentivo à aglomeração, o desestímulo ao uso de máscara, a guerra contra a vacina, o desprezo pelas orientações cientificas. Agora, com a oposição extremada à vacinação de crianças, pondo em risco suas vidas, a eutanásia indireta chega à sua forma mais expressiva e transparente.”
O autor recupera um retrato da prática de eutanásia na Alemanha Nazista, que, segundo ele, foi um passo preliminar em direção ao genocídio. “Grande número de médicos alemães colocou-se a serviço da ideologia do Füher trabalhando de forma contínua e maciça na eliminação de idosos, doentes mentais, doentes “incuráveis” e pessoas suspeitas de serem portadoras de doenças hereditárias. As crianças que nasciam com alguma deformidade eram naturalmente encaminhadas da maternidade para os centros de extermínio (asilos, hospitais, “lares” de idosos), sendo ali, juntamente com outras vítimas, executadas por gás ou injeção letal.”
Segundo o autor, as justificativas para tal monstruosidade eram principalmente econômicas, e/ou escoradas em algum tipo de base “científica” de caráter eugênico. Ele completa sua reflexão amarrando presente e passado num elo inquestionável: “Evidentemente, não é por acaso que evoco esse fato histórico, mesmo porque ele não é extemporâneo. Até aqui, descrevemos a eutanásia programada, um projeto radical e organizado. Acredito que ele está ativo e presente entre nós, porém ajustado às atuais práticas políticas: refiro-me à eutanásia indireta patrocinada pelo governo federal.”
A análise do autor é convergente às importantes ideias de Achille Mbembe em seu artigo de 2003, “Necropolítica”. Para ele, o Estado nazista “é visto como aquele que abriu caminho para uma tremenda consolidação do direito de matar, que culminou no projeto de ‘solução final’.” No mesmo artigo, Mbembe discorre sobre o borramento do limite entre estado de exceção e estado de direito nos territórios coloniais, estes profundamente permeados pelo racismo: “[Zonas] em que o estado de exceção supostamente opera a serviço da “civilização”. É urgente decolonizar.
Fevereiro, apesar de ser o mês mais curto do ano, nos rendeu ainda mais episódios repugnantes. Sobre alguns deles discorre Sylvain Levy (SPBsb) em “Mal estar na civilização – Um depoimento ou Terra Brasilis em transe” (OP-296/2022) tomado pelo mal estar, ou, melhor dizendo, em pleno “estado de angústia generalizada”. Cita o episódio do podcast Flow, em que o apresentador Monark defendeu a existência de um partido nazista reconhecido pela lei, e também a saudação nazista com que encerrou seu programa o apresentador bolsonarista da Jovem Pan, após proferir falsas equivalências entre nazismo e comunismo. O autor observa também o aumento de agrupamentos neonazistas no país, simultâneo ao incremento nos números de crimes de ódio, cujo caráter seria o de “pura eliminação do outro”. Discute, então, o tema da discriminação: “Todos os discriminados somos um único quando a discriminação nos alcança, e de um somos a soma de todos quando a discriminação alcança qualquer um. Seja por etnia, raça, cor, idade, orientação sexual ou gênero.”
O mês se encerra, e, em lugar de carnaval, passamos os últimos dias com as mãos à boca, roendo as unhas de apreensão diante da violenta invasão da Ucrânia pelo exército russo. Logo os fantasmas de uma terceira guerra mundial e de que o arsenal nuclear seja usado por um ou ambos os lados nos intensificaram ainda mais a insônia.
Em entrevista ao jornal Truthout, Noam Chompsky afirma que, antes de tudo e a despeito de qualquer tensão geopolítica histórica que ofereça bases para a compreensão do que está em jogo – e cuja responsabilidade é de muitos – a invasão da Ucrânia é um crime, comparável às invasões do Iraque pelos EUA, e da Polônia por Hitler-Stalin. Ele nos oferece uma importante reflexão: independente de quem esteja certo, ou louco, o mundo agora precisa se unir para reinventar uma saída diplomática para a ofensiva de Putin, evitar uma escalada de destrutividade, e reduzir o número de vítimas e os danos causados a elas.
Mas, Luiz Meyer também nos lembra que a Alemanha perdeu a guerra, e que Nuremberg foi um tribunal efetivo em sua função de expor o modo de funcionar do regime nazista. “Precisamos acreditar que um dia teremos o nosso tribunal.” Vanessa e Gizela também nos chamam à coragem de enxergar nossos avessos. Helena resiste, e insiste: “Nosso povo é teimoso e gosta da vida.”
Nós, do Observatório Psicanalítico, pegamos carona na convocação de Sylvain para estarmos atentos, e conclamamos todas e todos a ter olhos firmes para o mundo: para o sol, e para a escuridão. É preciso estar atento e forte!
Fevereiro também nos deixou com os olhos pregados no mundo quase o tempo todo, mas conseguimos desenvolver novos projetos, e olhar para dentro da nossa instituição.
Passamos a ocupar ainda mais o Instagram: além dos destaques de ensaios que acabam de ser publicados, e do “tbt” às quintas-feiras, inauguramos a “terça cultural”, espaço destinado a textos relacionados às artes, literatura, cinema e afins. Foram destaques este mês: “Notas sobre uma crônica de L. F. Veríssimo” (OP 17/2017) de Leonardo Francischelli (SBPdePA), “Em tempos difíceis, fique com a arte” (OP 84/2019) de Silvana Rea (SBPSP), “Arte, literatura e criação do amanhã” (OP181/2020) de Ana Valeslka Maia Magalhães (SPFor) e “Quando o carnaval chegar” (OP94/2019) de Maria Teresa Lopes (SBPRJ). Para quem ainda não nos segue no Instagram o perfil é @observatório_psicanalitico.
E, experimentando um novo formato, pela primeira vez publicamos juntos dois ensaios distintos sobre um mesmo tema. A ideia é apresentar diferentes olhares e recortes, e colocá-los para dialogar.
O tema foi a Formação em psicanálise, recuperando um debate espontâneo que aconteceu no grupo de e-mails do OP em janeiro, suscitado pela publicação do texto de Coutinho Jorge na Folha de São Paulo: “Bacharelado em psicanálise é aberração”.
Publicamos os ensaios “Formação analítica X Curso de Psicanálise” (298/2022), de José Alberto Zusman (SPRJ), e “Formatação, deformação: ensaiando sobre a formação em psicanálise” (OP-299/2022), de Alexandre Pantoja (SPBsb), Felipe de Nichile (SBPSP) e Renata Arouca (SPBsb).
O trio de colegas inicia seu texto apoiando-se em uma citação de Dostoiévski que torna evidente que o inconsciente – dada sua natureza – não cabe e não se adequa a tentativas de normatização. Os autores descrevem como as necessárias preocupações com “seriedade, respeito e rigor metodológico” algumas vezes podem deslizar para enrijecimentos e autoritarismos dentro da instituição, e reforçar uma estrutura excessivamente vertical de formação. Por sua vez, Zusman defende que a formação nas instituições psicanalíticas é uma vivência muito mais completa e profunda do que qualquer curso universitário pode oferecer – principalmente quando estes nascem de interesses econômicos, na esteira da mercantilização da educação. Dentro da estrutura da formação, defende a experiência de análise como pedra fundamental. Ele reforça que a transmissão da psicanálise deve ser um gesto de amor, e relembra a existência dos departamentos que oferecem análise a preços reduzidos em toda sociedade da IPA, como estratégia de democratização.
Evidentemente o debate está longe de se esgotar. Que nós, enquanto pessoas que fazemos a instituição, sejamos capazes de sustentar suas múltiplas vozes e de sempre ventilar as ideias.
Equipe de Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi, Rafaela Degani e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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