Editorial – Observatório Psicanalítico – abril/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – Abril de 2021
Na praia, chama-se ressaca o estado do mar após uma tempestade. O céu já está limpo, mas o mar segue revolto, estranho, imprevisível e cheio de resíduos carregados pelos rios, até que aos poucos eles vão sendo lavados, deixados, e se reorganizam, modificando a paisagem. É um momento perigoso, mas no qual se processam os efeitos da tormenta, em que algo se transforma.
Abril foi um mês de ressaca. Ao final de março, todos experimentávamos a sensação de que a pandemia se tornara infinita: um ano se passara e, contra a expectativa de alguma normalização, nos víamos inimaginavelmente às voltas com a maior taxa de mortos diários e de ocupação de hospitais. Em muitos espaços, dos consultórios às redes sociais, dos ambientes domésticos aos grandes veículos de comunicação, falou-se de intensidades sem vazão, ao lado de um cansaço desesperançoso, de um flerte com a melancolia. Abril veio então como uma espécie de dia seguinte ao desabamento dos céus, um mês de reorganização das forças e de elaboração do ano inteiro que o antecedeu e de reordenação dos recursos para enfrentar o que ainda está por vir.
Bonito ver que o OP, como em outros momentos, nos serviu de espaço comunitário a este processo. Aqui, a constatação da morte esteve ao lado da constatação dos diversos aprisionamentos a que nos vemos submetidos, permitindo justamente um movimento à contracorrente (para usar um termo de Laplanche), de celebração da vida e das histórias de vida, de indagação sobre as formas de resistência e de questionamento sobre o que nos permite algum grau de liberdade. Não foi para isso mesmo que inventou-se (e que seguimos reinventando) a psicanálise?
Nesse sentido, o primeiro movimento veio com o texto de Gizela Turkiewicz, Cibele Pires Rays e Paula F. Ramalho da Silva (SBPSP), “Os 50 anos da associação dos membros filiados: entre tradições e inquietações”. Trata-se, em primeiro lugar, de um cuidado com a nossa história, e de uma aposta: é preciso contá-la. O texto faz a função de manter na narrativa política de nossas instituições aquilo que se fez conquista ao mesmo tempo democrática e científica (não há ciência sem liberdade de pensamento). Mostra-se como, ao longo de 50 anos, a AMF foi propositiva e mobilizadora de questões pertinentes à formação de analistas na SBPSP, no Brasil e na relação com associações de candidatos em todo mundo, como destacou Leonardo Siqueira Araújo (SBPMG). Teve grandes conquistas e fez parte da vida política de analistas importantes. Nas palavras de Marina Bilenky (SBPSP), “Ao historicizar esse lugar, temos um retrato crítico da própria instituição (SBPSP), de seu conservadorismo e estrutura de poder. (…) Os analistas em formação trazem uma força renovada para que novas mudanças sejam alcançadas, mudanças urgentes e fundamentais para que a psicanálise mantenha-se viva, seja bem mais democrática e acompanhe nossos tempos”.
O segundo movimento foi o de chorar a morte e fazer o trabalho de luto, permitindo que o outro, que se foi, deixasse sua marca identificatória nos que ficaram. Oswaldo Ferreira Leite Netto (SBPSP), em seu texto “Adeus, Contardo Calligaris”, despede-se afetivamente deste analista de fora da Febrapsi, mas ainda assim interlocutor constante de muitos de nós, como mostram os diversos comentários ao texto. Alguém que, com humor e paixão característicos e com a disponibilidade descrita por Oswaldo, “fazia intervenções que contribuíam para que revíssemos moralismos e aprisionamentos normatizantes” e punha em cheque a versão idealizada de uma “verdadeira psicanálise”, nos convocando a uma maior autonomia de pensamento e maturidade ante polarizações estanques. Como nos disseram Renata Arouca (SBPBsb) e Liana Albernaz de Mello Bastos (SBPRJ), as instituições enriquecem com o que vem de fora delas.
O movimento seguinte foi também um contra-movimento. Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e GEP Ribeirão Preto), em “Quem leu Torto Arado?” nos lembra que nem tudo pode ser transformado em palavra e que há momentos em que temos nossas línguas cortadas, ao mesmo tempo em que há grupos que são mais frequentemente emudecidos. Com sua leitura de Itamar Vieira Junior e das personagens mulheres pretas de seu livro, nos mostra que, para além de dar microfone a quem historicamente não o tem, podemos, como analistas e como cidadãos, aprender com os calados: eles sabem como fazer ouvir-se em atos. Atos de resistência, que buscam a mudança das estruturas muitas vezes a partir da brecha e não na disputa central de narrativas.
Não à toa, o que se seguiu foi um convite à reflexão sobre os processos de maturação. Afinal, não são apenas as crianças e adolescentes descritos por Carolina Freitas e Fabiana Britto Grass (SBP-PA) em seu texto “Geração Álcool Gel” que buscam uma metamorfose como processo de mudança e crescimento” e que têm vivenciado isso “de forma solitária e afastada do espelhamento com o grupo”. O texto ecoa nos comentários com uma pergunta sobre o que se passa também com os adultos e sobre o que acontecerá com as formas e a importância que damos ao contato com o outro. Retoma também a importância dos grupos para que processemos as mudanças – e deixa subentendida a necessidade de que, num momento como esse, sigamos no processo contínuo de reconstituí-los e reconfigurá-los nas formas possíveis. Manter os grupos vivos e com laços produtivos no ambiente online do qual todos estão cada vez mais exaustos tornou-se um desafio constante.
Cabe dizer que, além dos textos publicados no Facebook e no site da Febrapsi, o Observatório Psicanalítico conta com um grupo de emails em que é possível arriscar, por meio de comentários menos estruturados, pensamentos que só depois vão se transformando em textos articulados – o que acaba sendo uma forma de construção algo coletiva. É também um espaço para diferentes debates acerca de nossas instituições e, neste sentido, abril foi um mês em que ali se puderam repercutir o “Manifesto Febrapsi – carta aberta à população”, discutir manifestos de repúdio a instituições de saúde, (re) problematizar a regulamentação da psicanálise. Foram esforços de pensamento conjunto e justamente de amadurecimento de posições antes que pudessem ser firmadas em definitivo. Esta sim é uma reinvenção do espaço online, sempre tão marcado por “statements” que, após anunciados, tornam-se posições eternas, impassíveis de revisão.
Por fim, nas palavras de Gabriela Seben (SBP-PA), no último texto do mês, “Apesar das dores que também nos abalam, como seguiremos escutando?”, o que “parece mais importante é que, assim como Freud, possamos manter viva a palavra e o pensamento crítico, talvez o único antídoto realmente eficaz contra o risco de paralisia e morte psíquica”. Ao que Maria Inês Baccarin (SBPSP) acrescenta que estamos traçando os “esperançosos caminhos do pensarmos juntos”. Que venham então novas tormentas e calmarias.
Equipe Curadoria
Beth Mori, Daniela Boianovsky, Ludmila Frateschi e Rafaela Degani.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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