Observatório Psicanalítico 34/2017
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
Consciência Negra
Por ocasião do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro
Wagner Vidille (SBPSP)
Caros amigos,
Escrevo aproveitando o intervalo entre sessões e a ausência de um dos pacientes, preso no trânsito em meio a uma manifestação, na Rua da Consolação (nome mais que adequado para o que segue), neste feriado da chamada “Consciência Negra”, pelo menos para os que moram aqui em São Paulo ou no Rio.
Gostaria de compartilhar com vocês alguns sentimentos e lembranças.
Hoje, no caminho para casa, ouvi, pela CBN, a Bethânia recitar um poema de Castro Alves, um trecho do belíssimo Navio Negreiro. Lembrei-me logo de Joaquim Nabuco e, ao mesmo tempo, do nosso maior sociólogo, Gilberto Freyre. Sempre que meu estoque de Plasil está em ordem, consigo ler “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”, escrito logo depois de “Casa-grande & Senzala”, em 1934. Um relato de cair o queixo! Uma verdadeira vergonha!
Gilberto Freyre recorreu a cerca de dez mil anúncios, publicados em jornais do Rio (Jornal do Commercio) e do Recife (Diário de Pernambuco), interessado inicialmente em levantar não só as origens étnicas dos africanos “ensardinhados” e trazidos ao Brasil, mas também os aspectos culturais que envolveram a retirada à força dos que se tornariam “cativos”, aqui, do outro lado do Atlântico.
Nos anúncios, Gilberto começou dando atenção nos “sinais de nação”, escarificações ou cortes na face, um precioso elemento de identificação grupal; ou mesmo às dentaduras dos “fugidos”. A partir da introdução do açúcar em sua dieta (coisa que não conheciam na África), os doces fizeram seu estrago, transformando dentaduras comumente limpas e perfeitas em bocas desdentadas e cheias de
cáries. A identificação por traços físicos era a única forma de identificação “das peças”, uma vez que seriam caçadas pelos sertões adentro e trariam polpudas gratificações aos caçadores.
Os anúncios mostravam, sem o menor disfarce, a crueldade a que estavam sujeitos os escravos. Os “fugidos”, muitas vezes, eram descritos pelos sinais de maus-tratos e castigos a que eram submetidos. Deformações por excesso de trabalho, marcas oriundas de ferro em brasa e outros tipos de tortura, cicatrizes de relho ou correntes. Havia anúncio de raquíticos, depauperados, olhos vazados, ausência de partes do corpo, oriundos, certamente, de causas sociais brasileiras – melhor dizendo – causadas pela escravidão. Quantos eram gagos!
Um pesadelo! O maltrato era a regra! Os escravos eram vendidos, alugados, arrolados em testamentos, assim como botas, carruagens, terrenos, casas etc. É interessante lembrar que, na decadência econômica do “senhor”, o escravo era o último bem de que o dono se desfazia, antes da falência econômica.
ATTENÇÃO
“Vende-se para o mato uma preta da costa, de idade de quarenta e tantos annos, muito sadia e bastante robusta, sabe lavar e cozinhar o diário de uma casa… Na mesma casa, vende-se uma tartaruga verdadeira.”
Recomendo este “belíssimo” trabalho de Gilberto Freyre, que nos faz lembrar do trecho mais vergonhoso de nossa história social e política.
Sem entrar nos esperados “aspectos hermenêuticos” e psicanalíticos da questão, queria ainda compartilhar mais uma breve história. Visitando recentemente o lindo Museu Imperial de Petrópolis, na última sala – a sala dos apetrechos de “contenção” de escravos -, entre gargalheiras, troncos, cordas de sedenho, coletes de couro e vira-mundos e outros ferros, uma jovem mãe negra apresentava a seu filho (de uns 7 ou 8 anos) as “ferramentas” citadas. O menino, do alto da sua singeleza, lhe perguntava: “Mãe, pra quê que serve isto?”
E durma-se com um barulho desses…
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