Observatório Psicanalítico – 207/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
América latina no Observatório Psicanalítico: a Crise da Democracia Ultrapassa as Fronteiras
Beth Mori (SPBSB), Daniela Boianovsky (SPBSB) e Ludmila Frateschi (SBPSP)
Estamos muito felizes e emocionadas com a realização da mesa “Democracia em crise na América Latina”, do 33º Congresso de Psicanálise da FEPAL, ocorrida no dia 30/10, de modo virtual. Este texto visa narrar um pouco de nossa experiência no planejamento e organização da mesa, bem como trazer de volta para este espaço do Observatório Psicanalítico as discussões que, nascidas aqui, foram ali arejadas e aprofundadas, para que então possam seguir repercutindo.
O Congresso denominado “Fronteiras” estava previsto para acontecer em Montevidéu (Uruguai) em setembro e, em função da pandemia que nos acomete, teve que sofrer muitas adaptações. Parabenizamos Maria Cristina Fulco (APU) e Elizabeth Chapuy (APC), à frente da Comissão Científica, pelo sucesso do formato virtual e pela rica programação científica que nos foi ofertada nas diferentes mesas realizadas ao longo de todos os finais de semana do mês de outubro. Fazemos coro também à homenagem feita a Marcelo Viñar, psicanalista uruguaio de contribuição mundialmente relevante para nosso campo, especialmente no pensamento sobre a relação de nossa clínica e de nossas instituições com a política. É dele a pergunta que orientou a programação: “De que modo e com qual finalidade pode ou deve um psicanalista ser cronista de seu tempo e testemunha ativo, implicado com sua história contemporânea e da cultura em que vive?”.
Eram três os eixos de conversa propostos, como vieses temáticos: Subjetividades, Outridades, Culturalidades. O Observatório Psicanalítico (OP) foi convidado a organizar uma mesa dentro do eixo “Culturalidades”. Cabe salientar que o OP, criado em 2017 pela Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), propõe-se como um dispositivo para promover o pensamento psicanalítico sobre os acontecimentos cotidianos que nos atravessam e sobre possíveis intervenções. A partir da leitura dos principais temas que ocuparam as nossas publicações ao longo dos últimos dois anos (desde o Congresso anterior da Fepal, ocorrido em 2018), constatamos que nosso continente chega a 2020 e à crise do capitalismo e da democracia no mundo ainda marcado pelos efeitos transgeracionais da cruel colonização hispânica-portuguesa, do extermínio dos povos originários e da escravização dos africanos que foram para cá trazidos. Definimos, então, como tema da mesa a “Democracia em Crise na América Latina”.
Em muitos países do continente, fortalecem-se governos autoritários, marcados por sua indiferença aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, observam-se inúmeros movimentos de denúncia e protesto: por um lado, em prol daquilo que afeta a todos (o clima e o meio-ambiente, por exemplo) e, por outro, contra tudo aquilo que cruelmente nos distingue (o racismo, a sobrevivência de povos originários, a xenofobia, a LGBTfobia, o machismo, feminicídio, violência contra as crianças, dentre outros tantos problemas sociais).
Ensaios recentes do Observatório Psicanalítico refletem os inúmeros protestos pelo mundo. Filmes como “Coringa” (Todd Phillips, EUA, 2019), “Bacurau” (Kleber Mendonça, Brasil, 2019), “A Odisseia dos Tontos” (Sebastián Borenzstein, Argentina, 2019), bem como outras expressões artísticas (vale citar Grada Kilomba) e manifestações antifascistas e antirracistas mundiais contra a morte de George Floyd, assassinado cruelmente por um policial norte-americano, ecoam questões em nossos ouvidos.
Desde março deste ano de 2020, a América Latina vem sendo também intensamente atingida pelo Sars-CoV-2 e o cenário torna-se ainda mais dramático. Cresce a conscientização de que a desigualdade econômica se aprofunda, de que seguem sofrendo os grupos historicamente mais atingidos: a pandemia se faz mais grave entre os mais vulneráveis, as mortes são mais numerosas entre os que tem menos acesso a espaço, saneamento básico, recursos de higiene e ao sistema de saúde, ou entre aqueles que não possuem condições de se afastar do trabalho e fazer o necessário confinamento (porque dependem direta e imediatamente do convívio e da cidade para a manutenção de suas atividades econômicas de sobrevivência). Vemos, ainda, que os dados de contaminação e óbitos evidenciam as desigualdades entre os países – e entre suas lideranças.
Neste contexto, perguntamos: Que efeitos a violência social tem nos sujeitos que a experimentam? Como eles podem ser elaborados? E qual é o limite de violência sofrida para que seja possível evitar reagir a ela com mais violência? Há casos em que a violência de reação poderia ser justificável? Como tais conflitos marcam e geram sofrimento nos habitantes do continente? Qual o papel do psicanalista na escuta e acolhimento do “mal-estar de nossa civilização” produzido que, da trama social, transborda em nossa clínica, seja dentro ou fora dos consultórios?
Escolhemos uma obra, do artista brasileiro Emicida, como estímulo de abertura da mesa, por entender que ela de algum modo sintetiza e amplifica estas questões: o clipe AmarElo, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PTDgP3BDPIU . Cabe ressaltar que Emicida é o nome artístico de Leandro Roque de Oliveira e vem da fusão das palavras “MC” (rapper) e “homicida”, porque se dizia que ele “assassinava” seus concorrentes nas “batalhas de rap”. Ele compõe em rap e em outros gêneros, canta, é produtor musical, desenhista e escritor. “AmarElo” é a faixa-título de um de seus álbuns. Ela utiliza como sampler (espécie de refrão trazido de outra música na composição de um rap) a música “Sujeito de Sorte”, de Belchior, escrita em 1976, durante a ditadura militar no Brasil. Cantam com ele, no clipe, duas pessoas proeminentes no cenário musical brasileiro que se dizem não-binárias: Majur e Pablo Vittar.
Convidamos, então, quatro palestrantes de diferentes países para conversar conosco sobre estas questões: Leopold Nosek (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP), Laura Veríssimo de Posadas (Associação Psicanalítica do Uruguai, APU), Dalia Guzik (Associação Mexicana para a prática, pesquisa e ensino da psicanálise, AMPIEP Cidade do México) e Jorge Kantor (Sociedade Peruana de Psicanálise, SPP). A mesa foi comandada pela coordenadora de nossa equipe de curadoria, Maria Elizabeth Mori.
Laura nos presenteou com uma fala bastante analítica sobre o clipe de Emicida. Sua apresentação começa pondo em pauta, a partir do clipe e de dois poemas de Idea Vilariño, a passagem do tempo e a luta política ao longo do tempo. Marca o uso do sampler de “Sujeito de Sorte”, de Belchior, como algo que nos transporta às décadas de 60 e 70 e faz contraponto aos uber-contemporâneos corpos de Majur e Pablo Vittar. “Eles apontam claramente que não estamos nos anos 70, mas em um outro tempo em que artistas como Emicida, como sempre, se adiantam a nós”. Leva-nos a pensar: o que se repete e o que avança?
Desloca, então, a questão para o fio histórico que une as lutas sociais e para o lugar da violência nestas lutas, diferenciando aquela fria, que se dá repetida e serialmente ao longo dos anos, e aquela que vem como reação. Para ela, a violência de reação do oprimido parece mais aceitável e suportável. Ainda assim, é violência.
De forma não linear, salta para o comentário a respeito do refrão de AmarElo: “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”. Ressalta a importância de um eu que tenha voz para além do seu lugar socialmente determinado, cujas cicatrizes precisam ser marcas passíveis de contar uma história, mas não ferimentos reabertos a todo minuto. Às vezes, um ato violento é a fala de uma cicatriz, não de um sujeito. Emicida, artista que Laura passou a conhecer por conta desta mesa, pode pensar e falar incluindo seu lugar de negro na sociedade, ao mesmo tempo que o ultrapassa – com liberdade. A palestrante convoca os psicanalistas a ouvirem e estimularem este tipo de liberdade: “Como psicanalistas, consideramos um dever ético confrontar – incluir nas nossas reflexões e problematizar – tudo o que significa uma ruptura com as nossas formas habituais de ordenar o mundo, tudo que abra a possibilidade de conceber outros corpos, outras eróticas, outros modos de estar no mundo e outros modos de organização e convivência social”.
Laura sublinha ainda do clipe o uso repetido da gíria “tá ligado”, que nos remete à pulsão de vida e à escuta (conectada) de um analista. A partir daí, pensa a semelhança entre a posição do artista / analista político, como são Vilariño e Emicida, e a posição do analista: “Emicida tem a coragem de colocar-se em um não lugar, um lugar que evoca o que conhecemos por nossa prática na intimidade de uma sessão, e que, hoje, frente ao mundo em que vivemos, insistimos em reinventar na realidade social, para compartilhar estes ‘sonhos como drones’ de que algo novo possa vir”.
Seguimos, com Jorge, na máquina do tempo. Somos agora conduzidos a saltar de 11 em 11 de setembro: o dia em que ele se pôs a escrever o texto da mesa (2020), o dia do ataque às torres gêmeas (2001) e o dia do golpe e assassinato de Salvador Allende no Chile (1973). Por essa ponte associativa, somos levados a um testemunho pessoal sobre as ditaduras recorrentes a que a família dele foi submetida. “Desse dia eu me lembro claramente. Mandaram-nos voltar da escola para nossas casas. Os meus pais tranquilizaram-nos, versados como eram nos golpes de Estado, normalizando a situação naquela quinta-feira de outubro: era mais um golpe militar, isto era o esperado em nossos países”.
Somos, em mais um contraponto, levados também ao período em que o Peru passou por uma reforma agrária que resultou em uma verdadeira redemocratização da terra e, logo depois, pela extensão do direito a voto para os analfabetos, com efeitos duradouros e importantes, ainda que até hoje – e inclusive neste momento – o regime democrático no país esteja ameaçado. Ele diz, traduzindo bem este sentimento de dialética entre progresso e retrocesso, algo que vale para o Peru, mas com que todos nós nos identificamos: “É que a crise da democracia peruana distende suas próprias fronteiras internas a cada volta do parafuso”.
Dalia, com muita delicadeza, recoloca mais uma vez a questão do tempo. Pergunta-se e nos pergunta se a democracia em algum momento ou lugar realmente se consolidou. Retoma as muitas violências, situações traumáticas e disruptivas que afetam a população atual de nossa região e se repetem no mesmo padrão autoritário e corrupto. Fala de uma experiência comum em estarmos frente ao fracasso evidente do Estado na salvaguarda dos direitos básicos e da saúde física e emocional dos seus cidadãos, sobretudo a dos mais indefesos.
Enfatiza a dor da experiência traumática e suas ondas multiplicadoras, com suas terríveis consequências, lutos impossíveis, a experiência do irreparável e a dificuldade de lidar com aquilo que não se conseguiu simbolizar, digerir.
Depois de nomear e enumerar diversas violências e também formas teóricas possíveis para começar a pensá-las, conclui que o pensamento aprofundado sobre cada linha enumerada se faz difícil se não pudermos reconhecer o impacto do momento atual – e dos excessos de violência dos quais nos damos conta – em nós, analistas. De modo muito tocante, nos propõe que busquemos menos a neutralidade e mais a “vocação democrática” da escuta analítica: “Mas talvez em um sentido metafórico, (a violência) requer de nossa mais profunda vocação democrática o poder de escutar-nos e escutar ao outro em toda a sua complexidade, ainda que nos impacte, nos desorganize, nos escandalize, para poder preservar o enquadre interno (Green), o olhar psicanalítico que nos proteja”. Convoca-nos, acima de tudo, a ouvir o que vem sendo calado.
Dalia retoma a sensação possível de, ao ver uma obra de arte que escancara a violência, sentir-se violentado, ao lado do quanto de elaboração este contato traz. A partir da “porrada” representada tanto pelo clipe de Emicida quanto pelo poema de David Huerta, citado em sua fala, pergunta-se sobre a função da fala e do analista: “Não é isso que tentamos fazer em uma sessão? Não é isso que pretendemos ao entrar como psicanalistas em uma comunidade? Não se trata de uma intenção de mostrar a função elaboradora da palavra? A dos vínculos? Da cultura? Uma intenção de dar continência aos afetos mais temíveis e absurdos? (…) Não é uma forma de dar sentido à nossa história?”. A palestrante conclui, dizendo que, nesta mesa do OP no Congresso, tentamos fazer o mesmo.
Leopold Nosek, último a falar, começa voltando sua fala para as instituições psicanalíticas e para a resistência muitas vezes encontrada em trazer à mesa os problemas da cultura – refere-se inclusive às críticas recebidas pela Fepal sobre um possível excesso de temas extra-consultório no congresso. Sua fala é construída no sentido de dizer que há momentos sociopolíticos e também da história do sujeito em que nós, psicanalistas, “deixamos de ser os interpretadores de sonho e o sonho passa a ser o ponto de partida para iniciar os trabalhos, junto com os pacientes somos construtores de sonho e construtores de cultura”. Neste momento, estamos nós e todos do campo das humanidades convocados a fazer isso e a buscar a verdade. Os analistas, em especial, a contribuir para a construção de uma cultura pessoal localizada no mundo.
Leopold faz uma crítica social, pontuando que o capitalismo global se rearranja muito rápido e que é preciso pôr em xeque uma das grandes consignas do neoliberalismo, rediscutindo-se o papel do Estado. Nós analistas, segundo ele, trabalhamos “sob a nevasca”, como “vagalumes” ou “centelhas de luz”, buscando a verdade (ainda que provisória), buscando a emancipação humana do controle da vida, buscando construir sonhos e cultura onde há um deslocamento por vezes desesperançoso, como o das palavras de Emicida: “Como me encaixo? Como me situo?”.
Termina dizendo da importância de criar e sustentar horizontes comuns e do papel do Observatório Psicanalítico, do qual é apoiador desde o início, neste processo. “E penso que o grande papel do nosso Observatório, o qual comemoro, é manter esta ideia: de que temos em conta um horizonte. E nas épocas mais escuras, com menos bichos de luz, vagalumes, nós continuaremos olhando, mirando o horizonte. E o OP é um forte divulgador de que permanecemos, ao mesmo tempo que miramos os bichos de luz pequenos, realizando uma intervenção psicanalítica neste campo maravilhoso e infinito pelo inconsciente, mantemos o horizonte de uma emancipação da humanidade”.
Seguiu-se uma discussão bastante rica e emocionada. Uma das perguntas mais repercutidas foi a de nosso colega Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP), sobre os líderes que temos eleito que, como lembrou Laura, foi uma questão repetida reiteradamente em todo o Congresso. Para respondê-la, a palestrante retomou Paula Sibilia e suas considerações sobre o ressentimento silencioso de
certos setores mais conservadores diante dos novos direitos adquiridos pelas minorias. Jorge atentou que a explicação para a eleição de lideranças deve ser pensada sob o prisma da sobredeterminação psíquica e que há fatores que valem para todo o continente e fatores particulares de cada país. Sua ideia ecoa: Leo ressaltou que há fatores afetivos e não políticos nas escolha dos candidatos e que há que se observar os movimentos – ao que Dalia arrematou, “como pêndulos”, que ora priorizam algo, ora outra coisa.
Foi quase impossível não misturar as línguas – português e espanhol – ao escrever este ensaio sobre o espaço criado pelo Observatório Psicanalítico para pensarmos sobre a crise permanente da democracia na América Latina. A sensação de um continente comum, ainda que em países diferentes, tratados por perspectivas singulares, nos invadia. Não sabemos se o horizonte também é comum, às vezes sim, às vezes ele é um mosaico tão complexo (de psicanálises, de visões políticas, de formulações sobre quais seriam os papéis destinados ao analista) que o olho de cada um fica preso em um pedacinho e a ideia de comunidade se perde. Ainda assim, ficamos felizes de poder propiciar conversas e de estarmos todos nesse mesmo barco que é o do se por a pensar. Esperamos que essa narrativa contribua para a continuidade do pensamento deste grupo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo: