Observatório Psicanalítico 47/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Ainda resta esperança no insuportável?
Alice Becker Lewkowicz, Eleonora Abbud Spinelli, Joyce Goldstein e Maria Elisabeth Cimenti, da SPPA
“ O inferno dos vivos não é algo que será; se existe,
é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos
todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas:
aceitar o inferno e tornar-se parte deste até
o ponto de deixar de percebê-lo.
A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem
contínuas: procurar e reconhecer quem e o que , no
meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
Italo Calvino
Vivemos, no mês de abril, um encontro organizado pela APU em Montevidéu, que promoveu esperança em quem trabalha com grupos expostos à violência social. Foi o XIII Diálogo Latino-Americano Intergeneracional entre Hombres y Mujeres, que coincidiu com os vinte anos da COWAP. Esse encontro proporcionou interessantes reflexões sobre Infancia-Genero-Sociedad, destacando diferentes formas de exercício social da violência e suas consequências.
Dentre a apresentação de vários colegas, destacamos a narrativa da Dra. Carmen Rodriguez, psicóloga, doutora em Educação, consultora do UNICEF. Ela aborda a questão das crianças e adolescentes expostos a situações de extrema violência. Reatualiza conceitos utilizados por outros autores e os aplica a situações de grande vulnerabilidade. Resgata o termo “oprimidos” para se dirigir a essas pessoas.
Oprimidos são aqueles que já tiveram encontro com o “inferno”. Carmen define o inferno, citando Calvino, como o lugar onde se transita no insuportável; onde o insuportável é institucionalizado e as crianças transitam à deriva. Muitas crianças e adolescentes transitam pelo insuportável durante toda a infância.
Somos testemunhas de laços sociais que se nutrem dessas desigualdades, da exclusão, da intolerância às diferenças de todo tipo, dando lugar à opressão e ao aniquilamento.
Algumas instituições de proteção à infância colocam-se como mais um lugar de desproteção, ameaçando a existência das possibilidades criativas e da dignidade humana. Assim, tornam-se um instrumento público de repetição e vingança social.
Nessas situações, cria-se um inframundo institucional onde a ética se perde em detrimento de relações públicas de poder violentas que reeditam scripts de dessubjetivação.
Crianças ficam institucionalizadas em um circuito de desproteção, já que as instituições onde são acolhidas e que deveriam ser protetoras reproduzem o padrão de não acolhimento e os maus-tratos em relação a elas.
Rodriguez retoma o conceito de “regularidade“ de Foucault para colocar que, em alguns casos, o insuportável acontece, acontece e acontece… Dentro desse contexto, existem crianças que são convencidas de que não são semelhantes e inevitavelmente perdem a capacidade de se pôr no lugar do outro.
Como nos aproximarmos delas? Qual é a alternativa possível?
A psicanálise pode contribuir para dar visibilidade e voz a esses processos. A lei, que nem sempre é ética, pode ser denunciada e repensada. A ética de Antígona é inquestionável. Existem coisas que não se pode suportar!
A psicanálise pode exercer uma atividade macro e micropolítica sobre essa realidade; ter inserção sobre as políticas públicas que pensam a infância e dedicar-se a construir pequenos gestos que podem transformar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores.)