Observatório Psicanalítico 23/2017
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
A cura (gay), o bode (expiatório) e a banha (de porco)
Eduardo de São Thiago Martins
“Na concepção da psicanálise, também o interesse exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação, não é algo evidente em si.”
(Freud, 1915, terceira edição dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade)
Recentemente, no Planalto Central, um juiz federal concedeu uma liminar que abriria uma brecha no código de ética do Conselho Federal de Psicologia para que psicólogos pudessem “reverter a orientação da sexualidade de seus pacientes”, ou seja, “curar” pessoas de sua própria sexualidade – no caso, homossexualidade. Do ponto de vista da Psicanálise, não faltam referencias capazes de expor o absurdo da proposta.
A Psicanálise é regida pela ética do desejo, da subjetividade, da singularidade de cada indivíduo. O sexual psicanalítico opera na ordem da fantasia, da qual os comportamentos sexuais de um cidadão é a mais fina, superficial e, muitas vezes distorcida expressão.
O ser humano faz sexo porque sente prazer, escolhe suas atividades e investe seus amores naquilo que lhe dá prazer. É isso que lhe dá os contornos a que chama de “Eu”, sua particularidade. E da mesma forma que sente prazer, angustia-se, pois percebe-se também habitado por desejos e impulsos proibidos, uma vez que se vê enquadrado nas leis, na moral e nos bons costumes da época e da sociedade a que pertence.
Cabe à Psicanálise posicionar o sujeito frente às suas angústias, ajudando-o a dar sentido a elas, a conhecê-las, de modo que possa aproximar-se de escolhas mais livres e criativas em seu modo de viver.
A angústia não é doença para a Psicanálise. Aliás, a noção de patologia dificilmente se aplica à teoria psicanalítica. Freud transita todo o tempo, em sua vasta obra, num delicado e pouco delimitado espectro entre o que seria normal e patológico. A angústia é o substrato da cura analítica, e a cura em análise seria a capacidade de formação de compromissos mais salutares entre as leis internas de cada um – leis do desejo, reconhecidas via angústia – e as normas a que estamos submetidos.
Portanto, sugerir algo sobre quaisquer aspectos da sexualidade de um sujeito não está no âmbito da prática psicanalítica. Curar a angústia de um paciente, no sentido de eliminá-la, adequando-o aos parâmetros de normalidade de seu tempo e de seus grupos sociais, tampouco.
Mas Psicanálise não é Psicologia – que engloba, dentre outras, terapias que se propõem a adequar comportamentos – nem Medicina – que faz diagnósticos e busca curar doenças.
Um sujeito apaixonado, sofrendo as dores de um abandono, que procure um médico buscando alívio para sua angústia – aquele aperto no peito, aquele nó na garganta, aquela bola no estômago – não terá seu coração transplantado, nem suas amígdalas extraídas. Talvez acabe sendo medicado com antiácidos, caso o medico em questão seja pouco habilidoso para lidar com suas próprias angústias de abandono. O ponto é que não podemos curar o que não é considerado doença, apesar de doer. O mesmo vale para o Código de Ética da Psicologia.
Sob este ponto de vista, a interpretação da decisão judicial poderia até parecer simples: já que a homossexualidade não é considerada doença pela Organização Mundial de Saúde, não há o que ser tratado. Decisão, portanto, bizarra e sem sentido.
Fato.
Mas fato frágil e recente, pois até 1990 a homossexualidade ainda era considerada um distúrbio. Ela ainda é crime em 73 países do mundo, em muitos deles sujeita à pena de morte. Mas não no Brasil, por sua vez, campeão mundial de assassinatos por motivos relacionados à sexualidade. Talvez porque o sexo – lato sensu – seja um grave pecado para as grandes religiões do mundo.
A insistência em transformar o que é angustiante em doença, crime, pecado ou bruxaria, para que assim seja eliminado, está evidente na história da humanidade desde sempre.
A sexualidade é angustiante em sua essência; é inquietante. Sempre teremos desejos íntimos e proibidos que lutam bravamente para não serem revelados nem a nós mesmos. As formas de driblar o mal-estar inerente à existência de cada ser humano são as mais criativas, para não dizer, esquisitas. O que é estranho no outro nos coloca frente à frente com o estranho em nós mesmos.
A questão se torna então: quando é que a angústia individual de um sujeito – no caso o juiz, ou a psicóloga missionária que foi a agente da ação judicial – é capaz de ganhar tanto terreno no campo social? Se compartilhamos as mesmas fontes de angústia, independentemente das práticas sexuais ou de vida de cada um, o fato ocorrido no DF estaria a serviço de que? Ou ainda, a sexualidade serviria como representante, ou bode-expiatório, de quais outras tensões do organismo social que habitamos?
A banha de porco voltou a aparecer nos corredores refrigerados dos supermercados, em abundância de rótulos e embalagens. Até muito pouco tempo atrás, a banha de porco era um grande inimigo do organismo saudável. Mas ela pôde voltar a ter um lugar ao sol, e o glúten tomou seu lugar na carceragem dos ingredientes criminosos.
Não podemos perder de vista que quaisquer discursos, quaisquer formas de saber – gastronômico, científico, religioso, filosófico, político, artístico – estão a serviço de formações ideológicas (conceito de Michel Pêcheux), ou seja, um modo específico de produção que domina uma sociedade e um estado de relações de classe que a compõem – antagonismo, aliança ou dominação.
Leia-se: o que hoje não engorda, não é crime, pecado ou doença, a qualquer momento pode vir ou voltar a ser; vice-versa, interesse a quem interessar.
Os saberes médicos, psicológicos ou psicanalíticos tampouco escapam destas formações de discurso, ou do uso que fazemos deles nos emaranhados dos jogos de poder e controle que nos permeiam. Melhor seria se pudéssemos nos situar menos ingenuamente nesta trama, mantendo-nos mais próximos dos preceitos éticos realmente capazes de sustentar a árdua tarefa que é a construção da liberdade e da coletividade.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).