(1944 – 2006)
Fabio Herrmann foi o criador da Teoria dos Campos, e profícuo autor psicanalítico. Publicou uma centena de artigos em livros, periódicos científicos, jornais e revistas e mais de dez livros Teve atuação intensa no movimento psicanalítico de meados dos anos 80 ao início dos 90.
Ingressou aos 18 anos na Faculdade de Medicina da USP para poder tornar-se psicanalista, viveu Psicanálise por mais de quarenta anos. Estudou-a, praticou-a, pensou-a.
Médico recém-formado, e já com alguns anos de lida psicanalítica, mesmo antes de iniciar a formação psicanalítica no Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, começa a construir um pensamento psicanalítico original, tornando-se um autor da Psicanálise Brasileira. Por sua militância na burocracia institucional do movimento psicanalítico internacional nas décadas de 1980 e 1990, institui a Psicanálise Brasileira como sua bandeira política. Nesse período Fabio ocupou a presidência da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, da FEPAL (Federação Psicanalítica da América Latina) e diversos postos na hierarquia científica da IPA (Associação Psicanalítica Internacional). Luta importante, mas solitária, pois não contou com apoio dos colegas conterrâneos. No entanto, a Teoria dos Campos — como passou a ser conhecido seu pensamento — difundiu-se nos meios intelectuais brasileiro e latino-americano e vem agregando produção escrita de colegas, principalmente na forma de teses e dissertações acadêmicas. A par do movimento psicanalítico da IPA, Fabio batalhou em outras frentes. Desde 1984 exerceu a função de professor do Programa de Estudo Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP e em 1999 criou e presidiu até sua morte o CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos).
É tarefa desafiadora apresentar resumidamente esse pensamento. Não só pela extensão da obra, mas por desenvolver uma idéia, por assim dizer, quimicamente simples que, presente e direcionando toda a obra, não se mostra facilmente ao leitor como o elo que o estrutura.
A Teoria dos Campos nascida em São Paulo, nos fins dos anos 60, onde a clínica psicanalítica era intensamente praticada, cumpriu a tarefa de descer às origens da idéia psicanalítica freudiana para se perguntar sobre a natureza desse conhecimento. Usando da crítica à forma predominantemente clínica tomada pela Psicanálise vigente em nosso meio, a Teoria dos Campos penetra os fundamentos dessa disciplina, tomando-a por inteiro. É o resultado desse trabalho de investigação que, ao se constituir em uma obra escrita e em um pensamento psicanalítico original, impõe-se como uma Psicanálise Brasileira. Ela não veio a se constituir em nova escola psicanalítica, mas em uma maneira de pensar o homem no seu mundo, recuperando a concepção freudiana de psique para além do psiquismo individual.
Partindo da crítica à produção teórico-clínica dos modelos psicanalíticos vigentes na década de 60 no Brasil, principalmente em São Paulo, que pouco ou nada avançava para lá da repetição, em forma detalhista, dos mesmos temas e conceitos consagrados pelas escolas psicanalíticas dominantes — a freudiana e a klein-bioniana, a Teoria dos Campos, procedendo criticamente, recupera a capacidade heurística do conhecimento formulado pela Psicanálise e coloca em evidência o que Fabio chamou de idéia psicanalítica, ou seja, o trabalho freudiano de incorporação para a ciência de seu tempo da exploração do sentido humano. É dessa forma, portanto, que a Teoria dos Campos resgata o valor heurístico, ou de descoberta, do papel do fazer clínico na formulação do conhecimento psicanalítico. Tarefa que implicou outro resgate, o do método da Psicanálise.
O pensamento psicanalítico de Fabio, em seu primeiro texto escrito como notas pessoais, “O Campo e a Relação”, de 1969, já mostra como são interdependentes suas duas idéias formadoras: a de método interpretativo como ruptura de campo e a de absurdo como as regras invisíveis e inapreensíveis que estruturam os campos de sentido humano, a psique, regras que só se mostram pelo processo interpretativo. É esta a idéia simples, no sentido da química, que sua obra desenvolve, no meu entender, uma idéia de dupla face — método/absurdo.
A parte central da obra de Fabio está representada pelos livros que compõem a série dos Andaimes do Real, onde trabalha exaustivamente a idéia simples. Trata-se de três livros que conheceram várias versões. Sob o título geral de Andaimes do Real, dizem respeito à compreensão psicanalítica da construção da vida humana considerada como o real, em seu sentido próprio de estrato produtor do humano individual, social ou cultural; diferenciando-o da representação que se tem do mundo — a realidade. Ao real interiorizado no sujeito, trata por desejo.
O primeiro livro da série traz atualmente o título de Andaimes do Real: O Método da Psicanálise e em sua terceira edição foi publicado pela Editora Casa do Psicólogo, em 2001. Trata da recuperação do método da Psicanálise na clínica, lugar de seu esconderijo, devido ao desenvolvimento, principalmente em Freud, de teorias sobre o psiquismo e sobre a cultura, e de conjuntos de teorias de técnicas para o tratamento de neuroses. É um ensaio de epistemologia interna da Psicanálise, que desentranha do fazer clínico seu procedimento metodológico de ruptura de campo. A especificidade do diálogo analítico de constante desrespeito ao assunto abordado pelo paciente provoca-lhe um vazio representacional e a liberação de novos sentidos ou auto-representações possíveis, potencialmente alcançáveis na forma de um vórtice rodopiante das possibilidades constitutivas do sujeito. Sob tal perspectiva revisita e reordena noções centrais da Psicanálise, como inconsciente, interpretação, fantasia, transferência, e constrói conceitos metodológicos ordenadores desse fazer interpretativo — campo, relação, ruptura de campo, expectativa de trânsito, vórtice, luto primordial.
O segundo livro da série é dedicado à psicanálise do quotidiano, no dizer de Fabio, um ensaio sobre psicanálises possíveis. Tem como propósito mergulhar no quotidiano dos homens para identificar como constroem sua realidade. Sob o título Andaimes do Real: Psicanálise do Quotidiano está em sua terceira edição, também pela Editora Casa do Psicólogo (2001). Penetrando a forma como os homens constroem seu quotidiano, alcança uma descrição do mundo em que vivemos. No primeiro momento, esmiuçando o tecido de que é feito o quotidiano, o absurdo, a que trata por real, o texto penetra as regras constitutivas dos vários campos que o quotidiano dos homens habita. Em seguida, explora o próprio resultado da construção desse quotidiano pela exploração de uma função que descobre, a rotina, função opacificadora dessas regras absurdas em sentidos compartidos pelos homens daquele quotidiano, definidos como realidade. Tecido e resultado da construção do quotidiano impõem-se, no mundo em que vivemos, como uma psique do real, tomando do sujeito individual a maior parte de sua função de pensar e passando a pensar por ele. Para o sujeito o resultado é o pensamento em ato. É o ato que impõe um sentido ao pensar, invertendo a lógica que leva do pensamento ao ato. Retirado de nosso quotidiano o sentido interior do pensar emocional, é o ato que substitui o pensamento na sua função de representar homem e mundo.
O terceiro livro da série trata da compreensão da lógica do absurdo, estruturante das regras conformadoras do real humano. A exigência imposta pelos achados da ação do método na clínica, que vão tornando mais claro o resultado de oferecimento ao paciente de novas auto-representações como efeito terapêutico das sucessivas rupturas de campo, é explorada neste livro pela noção da representação como função defensiva face ao absurdo. Constrói o conceito de crença considerando as falhas a que ela pode estar submetida no cumprimento de seu papel de sustentação das representações. Sem falhas a crença é modal e, como uma dama discreta, não se manifesta — por exemplo, a crença no ar que se respira. Abalada pela suspeita na representação que sustenta, manifesta-se mais brandamente no que chama de forma suspeita da crença, encontrada nas neuroses, ou mais fortemente, caso da crença absurda, na forma débil que toma no delírio. Desenvolve todo um pensamento técnico-teórico sobre a clínica da crença. Considera ser o processo interpretativo de ruptura de campo um fator de desestabilização da função da crença, por possibilitar o surgimento de possíveis auto-representações. A crença é forçada a deixar de sustentar a representação que se desestabiliza, para sustentar uma outra que deixa de ser apenas possibilidade de representação. Este livro, em segunda edição de 2006 pela Casa do Psicólogo, torna-se o terceiro volume da série, agora com o título Andaimes do Real: Psicanálise da Crença.
Os outros livros de Fabio e a maioria dos artigos publicados continuam o desenvolvimento desta idéia de dupla face constitutiva de seu pensamento. Assim, Clínica Psicanalítica: A Arte da Interpretação, que em 2003 teve sua terceira edição publicada pela Editora Casa do Psicólogo, aprofunda e sistematiza mais o pensamento clínico da Teoria dos Campos, tratado inicialmente no livro sobre o método da Psicanálise.
Também pela Editora Casa do Psicólogo, em 2001 vem a público a segunda edição de O Divã a Passeio: À Procura da Psicanálise onde não Parece Estar, uma coletânea de artigos cuja construção teórica filia-se aos desenvolvimentos do livro do método, como “A Rani de Chittor: o rosto”; a este e àquele sobre o quotidiano, como “O porquê e o tempo na terra de Hotu Matu’a”, ou ao livro da crença, caso de “O escudo de Aquiles: sobre a função defensiva da representação” e “43 de abril, ou o drama ridículo de Akesenti Ivanovitch”.
Introdução à Teoria dos Campos, Casa do Psicólogo, 2004, 2ª edição, apresenta resumidamente os temas tratados pela teoria dos Campos.
A Psique e o Eu, e O Que é Psicanálise: Para Iniciantes ou Não…, estes dois últimos de 1999 e pela Editora HePsyché, podem ser considerados explorações da idéia de dupla face, método/absurdo, na peculiar forma de interpenetração de uma face pela outra.
Por fim, merece consideração especial A Infância de Adão e Outras Ficções Freudianas, de 2002, Casa do Psicólogo. Trata-se de um livro de contos ensaísticos que leva a sério a tese esboçada no capítulo introdutório de A Psique e o Eu, quanto ao caráter ficcional do conhecimento produzido em Psicanálise. Seus dois primeiros capítulos são de especulação teórica: “A ficção freudiana” tematiza a ficção como forma de conhecimento psicanalítico, e “Notícias de Límbia” introduz o leitor ao lugar em que essa forma de produção de conhecimento é privilegiada, a Teoria dos Campos, transvertida ficcionalmente na imaginária Límbia. O pensamento que organiza o livro é o de haver na idéia psicanalítica um lugar próprio onde se encontram, de mãos dadas, ficção e ciência.
Finalmente é preciso citar um texto inédito, escrito entre 2002 e 2006 para aulas na PUCSP e no Instituto de Psicanálise, Da Clínica Extensa à Alta Teoria: Meditações Clínicas. Tem como foco o desenvolvimento da concepção de alta teoria para as formulações a respeito do método psicanalítico. Dessa perspectiva Fabio denuncia na clínica padrão o vício de tomar às regras de setting como responsáveis pela eficácia terapêutica do processo psicanalítico e cria a expressão clínica extensa, para aquela desenvolvida tanto no consultório particular, como em instituições, ou na própria análise da cultura, pautada no fazer metodológico da Psicanálise. A idéia que Fabio persegue aqui é a de que a clínica qualificada como padrão é um caso especial da clínica extensa, se dispensar o fetichismo da técnica e superar a superstição do setting.
Fabio Herrmann, autor da Psicanálise Brasileira, apostando no método psicanalítico, vaticina para a Psicanálise o cumprimento de sua vocação freudiana original de se transformar em uma ciência geral da psique, dando-lhe, no entanto, a tarefa de alterar o padrão epistemológico da ciência contemporânea para que nela possa caber.
Dados Biográficos:
- 1944 — Nasce em São Paulo a 11 de julho.
- 1968 — Forma-se médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
- 1971 — Ingressa no Instituo de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
- 1976 — Recebe o título de Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da UNICAMP com a tese O Gesto Auto-Destrutivo: Estudo Psiquiátrico da Tentativa de Suicídio por Ingestão de Corrosivos, sob a orientação do Prof. Dr. Aníbal Silveira. Ingressa como membro na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
- 1979 — Inicia a publicação da série de livros Andaimes do Real.
- 1984 a 2006 — Professor do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
- 1985 — Eleito presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
- 1986 — Eleito presidente da FEPAL (Federação Psicanalítica da América Latina).
- 1988 — Preside o XVII Congresso Latino-Americano de Psicanálise, realizado em São Paulo.
- 1988 a 1989 — Co-Presidente para a América Latina do Comitê de Programa do XXXVI Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, Roma, 1989.
- 1993 a 1997 — Exerce a função de Co-Presidente para América Latina do Comitê de Sociedades da IPA
- 1999 — Funda o CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos), que promove o I Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos.
- Desde o final dos anos 90 abandona as atividades burocráticas do movimento psicanalítico internacional, dedicando-se à produção intelectual, à clínica e às atividades de ensino e pesquisa em Psicanálise.
- 2006 — Falece em São Paulo a 8 de julho.
Resenha elaborada por Leda Herrmann, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
¹ Em versão modificada, este texto foi publicado na revista Psique Ciência e Vida, Grandes Pensadores da Psicanálise, edição especial, ano I, no 4. São Paulo, Editora Escala.