Vidas Negras Importam – V

Observatório Psicanalítico – 178/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.

 

Vidas Negras Importam – V

 Sônia Eva Tucheman (SBPRJ)

 

No dia do assassinato de George Floyd, escrevi um pequeno texto sob o impacto daquele terrível acontecimento. Fiquei especialmente afetada com a displicência com que o policial comete o assassinato, com a mão no bolso, indiferente à vida humana que vai se esvaindo, parecendo quase entediado, confirmando publicamente que vidas negras não importam. A displicência, a indiferença, o enfado, que podem ser condensados em verbalização por duas palavras — E daí?…—, é o Horror.

 

Lembrei-me do livro As benevolentes, em que Jonathan Littell utiliza o relato em primeira pessoa para retratar as atrocidades da Segunda Guerra Mundial do ponto de vista do oficial nazista Maximilien Aue. O autor penetra na mente do algoz, nos faz ler suas ideias e ver o Mal através de seus olhos.

 

E o que vêem os olhos e o que pensam – melhor: não pensam, no sentido bioniano – os racistas que liberam o preconceito até que seja capacidade de matar, que assassinam tantos Floyds, enquanto cometem suas torpezas?

 

Com doído esforço, tento traçar o percurso que segue a mente do racista, penetrar no seu mundo subjetivo como requer a função analítica (até onde suportamos?), conhecer a infâmia, para me perguntar como faz Primo Levi ao relatar suas vivências como prisioneiro do campo de Auschwitz: É isto um Homem?  

 

​​​​“É ISTO UM HOMEM?”

 

​Estou com a mão no bolso e com o joelho no seu pescoço, negão. Você pede socorro, não consegue respirar. Tenho vontade de rir. Quem vai socorrer você, negro? Estou com a mão no bolso, não percebe?, que é pra mostrar como é fácil te destruir. Piso em você como em uma barata. Posso lixar as unhas, palitar os dentes, simplesmente ficar com a mão no bolso enquanto te mato. Não me importo se me filmam. Não se importam se te mato. Sua vida preta não importa. Tenho o poder na minha mão branca que está no bolso. Posso acabar com você quando eu tiver vontade e acontece que hoje estou com vontade, é isso. Vou contar no bar, hoje à noite, que acabei com um crioulo filhodaputa e foi tão fácil que nem precisei tirar a mão do bolso. Só pisei em cima, e pronto. Vão rir muito. Hoje à noite, vou contar como você é covarde e implora pela vida. Como você é fraco. Como preto nem reage. É gente fraca. Preguiçosa, submissa. Na próxima vez, vou palitar os dentes e sorrir para a câmera. Tá entendido? Você não é semelhante a mim. Eu sou um Homem. E você, o que é?

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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