Observatório Psicanalítico – 175/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Vidas negras importam – IV
Beth Mori e Cláudia Carneiro (SPBsb)
Nesta série de ensaios intitulados “Vidas Negras Importam”, publicados pelo Observatório Psicanalítico, decidimos trazer para o debate a invisibilidade a que as mulheres pretas vêm sendo submetidas historicamente, por um sistema escravagista dominante que as impediu de serem reconhecidas como sujeitos. Elas sofrem uma dupla opressão: por serem pretas em uma sociedade racista e por serem mulheres em uma sociedade machista, que discrimina mulheres.
Fala-se que o inconsciente não tem cor. Mas a cor da pele negra está evidentemente representada como uma forte impressão psíquica, traumática, pois está associada a aspectos históricos, políticos, econômicos – um “apartheid psíquico”, como definiu a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira. Ela dá seu depoimento: “Nós, os negros, vivemos uma segregação silenciosa, o que durante muito tempo funcionou como se tivéssemos um sentimento persecutório, uma vez que o preconceito era negado. Sentíamos uma perseguição sem razão. Isso vem mudando, já que parece existir uma disposição maior da comunidade científica e da sociedade de expor a crueldade de um sistema que se diz ‘não racista’, mas ainda conserva e mantém atitudes racistas. O negro pode ser consciente de sua condição, das implicações histórico-políticas do racismo, mas isso não impede que ele seja afetado pelas marcas que a realidade sociocultural do racismo deixou inscritas em sua psique”.
No livro O segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir nomeou a categoria do outro para afirmar que a mulher não é definida em si mesma, mas em relação ao homem. Referia-se ao lugar de objeto em que a mulher é situada pelo olhar do homem. A escritora e ativista no feminismo negro Grada Kilomba foi além e afirmou que as pretas se encontram na categoria de “o outro do outro” – por serem nem brancas, nem homens. Para Djamila Ribeiro, sofrem de uma carência dupla, antítese da branquitude e da masculinidade. Não sendo brancas, nem homens, nunca teriam a função de si mesmas. Este lugar de outro do sujeito requer pensar a dimensão significativa do corpo negro da mulher no sistema simbólico da cultura e na forma como se estrutura essa rede de significações.
A realidade brasileira reforça e atualiza brutalmente os símbolos que, como apontam Beauvoir e Kilomba, marcam os psiquismos das mulheres e das mulheres negras. As desigualdades de gênero e raça revelam que as mulheres negras são as mais afetadas: chefiam 41% das famílias negras e recebem, em média, 58% da renda das mulheres brancas; apenas 0,4% das mulheres executivas nas maiores empresas brasileiras são negras (IPEA/ONU Mulheres/MJ). O Atlas da Violência de 2019 mostra que 66% de todas as mulheres assassinadas no Brasil são negras. Um aumento de 29,9% em 10 anos, enquanto homicídios de não negras cresceram 1,6%. Pretas também são as maiores vítimas de violência doméstica, obstétrica e mortalidade materna (Ministério da Saúde/Fiocruz). A CPI da esterilização criada no Congresso Nacional em 1991 constatou que mulheres negras eram esterilizadas forçadamente em serviços de saúde. Tinham seus corpos mutilados, à mercê da vontade do outro.
O racismo produz sofrimento psíquico. A discussão que se coloca à psicanálise é de incluir a questão estrutural, atravessada pela “localização” social e cultural dessas mulheres, e não a reduzir exclusivamente à experiência individual. Seria manter uma visão binocular (Bion) da experiência íntima do sujeito: de suas vivências como indivíduo e como ser social, que sofre a opressão racista por pertencer ao lugar ocupado por grupos oprimidos (mulher e negra).
Pensar no lugar de fala das mulheres negras – o lugar social que ocupam a partir das condições socioculturais – é apontar para o não-olhar, aquele que nega não apenas a realidade objetiva, mas sobretudo a realidade subjetiva dessas mulheres. Essas inscrições psíquicas se constituem na infância, resultam das experiências de discriminação e afetam o sujeito independentemente de sua posição econômico-social.
Podemos pensar também nas resistências de alguns psicanalistas a entrar em contato com a dimensão psíquica do racismo. Caberá uma reflexão sobre o lugar de fala dessas mulheres e a capacidade de escuta do psicanalista, para reconhecer nesse outro um sujeito único e constituído a partir de suas experiências subjetivas em sua localização social. Um ser atravessado pelas experiências referentes a raça, classe, gênero, sexualidade.
Um exemplo certamente vivenciado por muitos psicanalistas são as produções intelectuais de grupos cujo lugar social é tratado de forma subalterna, dificultando sua visibilidade e legitimidade. Quantas professoras e professores negros tivemos? Quantas autoras e autores negros lemos durante a graduação? Quantas pessoas negras já se deitaram em nossos divãs ou frequentaram nossos consultórios? Quantos colegas pretos e pretas contamos em nossa formação psicanalítica? Nós, psicanalistas, em esmagadora maioria, falamos e escutamos do lugar de uma branquitude. Nascida em Viena, de linhagem eurocêntrica, a psicanálise que realizamos leva em conta as questões raciais predominantes em nosso modo de ser e estar no Brasil?
Aquele que escuta pode ser empático ao outro, mas não pode sentir a experiência de quem sofre o preconceito, sofrimento encarnado no próprio corpo. Essa dor de quem vive na própria pele o preconceito é de ordem narcísica, vive um rasgo na própria alma. O analista que não viveu as dores do racismo pode não compreender essas dores e não dar a atenção necessária a elas. É preciso reconhecer a existência do racismo estrutural, naturalizado, na dimensão de nosso próprio inconsciente.
Para Freud, a busca da verdade era a condição necessária à mudança psíquica. A psicanálise deve possibilitar ao sujeito nomear o sofrimento, levando em conta os fatores identitários que incluem a verdade de sua história, sua cultura, seu grupo e sua singularidade.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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