Observatório Psicanalítico – 174/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Vidas negras importam – III
Maria Elisa Alvarenga (SBPRJ)
Estávamos sob o impacto da morte de George Floyd, com a imagem asfixiante de seu assassinato na cabeça, quando tomamos conhecimento do falecimento de Miguel Otávio, menino de 5 anos. Antes de George Floyd, vivemos o choque com a violenta perda de João Pedro, jovem de 14 anos morto enquanto brincava em sua casa, por uma ação policial. Antes de João Pedro, Cauã, Ágatha Felix, de 8 anos, e tantos outros que vamos perdendo a conta. Em comum, todos pobres, negros e assassinados pelo racismo estrutural resultante de séculos de escravidão.
Foi o racismo estrutural que asfixiou George Floyd, que atirou nas costas de Ágatha e que apertou o botão do elevador para Miguel Otávio. O corpo negro desumanizado e desprezado, torna-se a “carne mais barata do mercado”.
No período colonial, a construção simbólica de que os negros eram sujos, inferiores, primitivos, bandidos e dotados para a subserviência serviu para que a sociedade se organizasse de modo a segregá-los e dessubjetivá-los, procurando apagar sua história, cultura e voz. Foi o encontro do branco com o negro, que fez o negro virar o negro. O significante negro não mais evocava uma cor mas uma cadeia de palavras e imagens a ele associadas.
Para Grada Kilomba, este encontro que cindiu o mundo em brancos e negros se mantém e se alimenta através da nociva dinâmica na qual o eu da pessoa branca é medido e sustentado pela coisificação da pessoa negra, o outro como Outridade, nunca “eu”.
Já para Pontalis, o racismo é articulado com os fenômenos do estranhamento. Para ele, tem menos a ver com uma recusa radical do outro, de uma intolerância essencial às diferenças e mais com a conturbada e angustiante experiência com o duplo, este que é meu semelhante e diferente de mim. “Ao contrário do que se acredita, a imagem do semelhante, do duplo, é infinitamente mais perturbadora do que a do outro”, diz ele.
Silencioso, difuso, sutil, camuflado e às vezes, escancarado, o racismo à brasileira é, para o antropólogo Kabengele Munanga, a realização do “crime perfeito” pois “além de matar fisicamente, ele alija, pelo silêncio, a consciência tanto das vítimas quanto da sociedade como um todo, brancos e negros”.
A ausência de pesquisas psicanalíticas a respeito da herança escravagista e sobre o racismo pode ser um indicativo de que, no meio psicanalítico, também prevalece o silêncio. O número ínfimo de pessoas negras nos Institutos de Formação ou nos quadros societários são reveladores. Virgínia Bicudo, mulher negra, pioneira na psicanálise no Brasil, uma das fundadores da SBPSP e fundadora da Sociedade de Psicanálise de Brasília, já àquela época abordava o assunto a partir do sofrimento psíquico da população negra. Por que seus textos, hoje tema de teses de mestrado e doutorado, são pouco estudados?
Gostaria de aproveitar esta oportunidade para trazer uma situação que merece a nossa atenção. As pessoas negras não procuram analistas brancos. São raras as que procuram e quando o fazem, é com muita resistência. “A branquitude torna-se um sinal de ameaça e terror”, diz Bel Hooks. As críticas aos analistas brancos são contundentes e as experiências descritas, desastrosas. Tenho escutado e observado que para elas, os analistas não compreendem as dores do racismo nem as encaram com a devida atenção. Noto que a psicanálise é percebida como européia, branca, centrada em conflitos familiares próprios da burguesia e ignora que muitos de seus traumas provém da violência perpetrada diariamente pelo mundo branco.
Ferenczi nos ajuda a pensar sobre a força do desmentido como determinante na efetivação do trauma. Os analistas brancos, ao não darem crédito às suas experiências, ao negar-lhes a voz e a subjetividade, fazem a experiência analítica ser retraumatizante. Alguém só fala quando é escutado, e ser ouvido é pertencer. O que acontece conosco? Será que ao não escutá-los nos protegemos de reconhecer o mundo subjetivo das pessoas negras? O mundo no qual, nós, brancos, somos os opressores?
Vidas Negras Importam! Precisamos falar sobre racismo, muito. Mas precisamos ir além. Não podemos negligenciar a força dos atributos negativos produzidos pelo racismo imputados aos negros. Segundo Maria Lúcia Silva, “é preciso a criação de uma psicanálise brasileira comprometida com a construção de uma clínica que não recuse a realidade histórico-social do nosso país e que leve em consideração o impacto dessa história na construção de subjetividades”. É preciso enegrecer a nossa escuta para podermos escutar o racismo e reconhecê-lo na voz de nossos pacientes. Senão, qual psicanálise praticamos, que analistas somos nós?
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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