Observatório Psicanalítico 24/2017
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Vamos à exposição, digo, imposição do Santander Cultural?
Catherine Lapolli
Convido os amantes de arte, de ideias e de vivências humanas para rabiscar, no melhor estilo winnicottiano à várias mãos, porque senti falta de um outro para compartilhar meus sentimentos sobre o que a exposição de quadros e a imposição do silêncio me causaram.
Não fui à exposição Queermuseum no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, mas a exposição veio a mim. Não a exposição, e sim a imposição da suspensão da mostra e as reações de muitas pessoas contra e a favor, tanto da continuidade, quanto da interrupção da coletiva. Li manchetes na mídia veiculando forte condenação a quadros que estimulariam a pedofilia e outras perversões, além de desrespeito a religião, e notícias de correntistas do banco que encerraram suas contas bancárias por conta da exposição.
Não gostaria de encerrar investimentos afetivos neste assunto assim, de forma tão precipitada, para não ter perdas maiores. Nosso maior prejuízo com este episódio me parece que foi o espaço cultural, o espaço mental, o espaço de ser. Coline Covington, inspirada em Hannah Arendt, acredita que o mal nasce quando o ser encarna a alienação, quando
[…] acontece a destruição do outro que, seja motivada por gratificações narcísicas ou não, paradoxalmente, implica destruição do próprio self. O self, com suas limitações, necessidades e fraquezas, características que em conjunto constituem o que significa ser uma pessoa – precisa ser também negado. (Livro Anual de Psicanálise, 2014- pg307)
Fiquei impressionada não propriamente pelos quadros, mas pelo sofrimento que causaram. Sofrimento em quem viu nas obras valorização da pedofilia e desvalia da religião. E sofrimento em quem se viu privado de ver nas telas algo que poderia gerar um comércio rico de experiências. Sim, os investimentos deixaram de ser no vínculo entre seres humanos que pensam e suas fantasias, e passaram a desinvestimento, a expressão da pulsão de morte, conforme Green. A exposição morreu, foram encerradas contas bancárias, como se assim, fossem garantidos lucros na relação das pessoas entre si, com as crianças ou com a religião.
Não ganhamos mais com o vínculo com o outro? Seja vínculo de amor, de ódio, de conhecimento, ou todos eles, relembrando Bion? Consolidamos nosso patrimônio pessoal com os investimentos que fazemos nos objetos e com o que recebemos de volta, de preferência com juros, ou juras, se não for pedir demais! Formamos nosso psiquismo no contato com o diferente, capaz de nos oferecer o que não temos, ou nos provocar a pensar, se a falta persistir. Precisamos dos bancos para guardar nosso dinheiro, porque dentro do colchão não se gera lucro, bem como precisamos das ideias dos outros para enriquecer as nossas.
Freud tinha uma concepção econômica do psiquismo, mas diferente das que assistimos no caso em questão. Não desperdiçamos energia mental com o que não tem importância para nós, para nossa experiência de prazer. Então, um bom banco de vivências interpessoais garante que possamos investir em ideias ou atos que não representem riscos de perda de amor, e abandonamos trocas que ameacem bons negócios no futuro. Assim, transformamos um prejuízo inicial da exclusão, fruto de perdas inevitáveis de objetos muito desejados, em um fundo de médio a longo prazo. Se apostarmos na cotação do acervo da psicanálise, para conter pedofilia ou desrespeito religioso é mais vantajoso cuidar das pessoas e falar sobre isso, para reprimirmos juntos estes impulsos, para melhorarmos os recursos pessoais de todos, e não concentrarmos o patrimônio moral na mão de poucos. Precisamos alcançar nossa autonomia financeira e pessoal para nos tornarmos maduros e donos de nossas vidas.
Donos de nossas vidas, não da vida do outro, inclusive da vida mental do outro. Não podemos dispor da vida de crianças, porque elas precisam do espaço da sua infância e da sua sexualidade infantil, diferente da sexualidade adulta. Também não somos donos da vida mental dos artistas, que precisam do seu espaço criativo para brincar com fantasias variadas, uma maneira lúdica adulta de expor conflitos. Não podemos ainda nos adonar da fé, e encerrar uma exposição não cria uma disposição religiosa nas pessoas, harmônica com sentimentos sublimes, nem tampouco rende fraternidade entre todos.
Eu preferiria pintar, junto com todos que quisessem, um quadro colorido de um centro cultural, com muitas pessoas bastante diferentes entre si, circulando entre diversas obras, conversando sobre elas, rindo, enxugando lágrimas, esbravejando, desfrutando da catarse de sentimentos que um bom trabalho artístico pode oferecer. Fui roubada da possibilidade de pensar algo mais sobre queermuseum, fui privada destes bens da mente, que não são um produto bancário e não deveriam ser tratados assim. O vínculo entre humanos não tem preço!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).