Uma nova e já (quase) antiga História

Observatório Psicanalítico – 151/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Uma nova e já (quase) antiga História

Marcio de Freitas Giovannetti (SBPSP)

1 – Há quase vinte anos, em um fim de semana, recebi um telefonema de uma mãe aflita que pedia um atendimento urgente para seu filho que estaria em São Paulo por apenas mais 24 hs, seguindo em seguida para o exterior, onde já trabalhava há algum tempo. Estava muito preocupada pois o sentia muito deprimido, insistindo para que eu o atendesse com urgência. Não praticando mais a psiquiatria desde há muito, seu pedido soou-me insólito, mas dispus-me a vê-lo com o intuito de avaliar a situação e encaminhá-lo. Assim, propus que viessem a minha casa.

2- Surpreendeu-me a chegada de um jovem desacompanhado, desenvolto, bem articulado, muito diferente daquele depressivo necessitando de atendimento urgente das palavras de sua mãe. Conversamos por uma hora e ficou claro que não corria nenhum perigo nem necessitava de alguma medicação. Disse-lhe que não via nenhuma contraindicação em sua ida ao exterior, retomando seu trabalho, mas que lhe deixava meu Skype para, quando  lá chegasse, entrasse em contato comigo, caso sentisse necessidade.

3- Ele assim o fez. E mais uma vez. E mais outra vez. “Não saia daí” foi sua resposta quando lhe propus dar o nome de um colega naquele país. Ele havia construído um setting analítico e a transferência – à distância ? – já estava em andamento. Como ele, eu estava em território desconhecido, um expatriado de meu lugar de origem, o setting clássico da Psicanálise. Mas ao longo de nosso percurso de cinco anos fui me dando conta de estar no mesmo lugar, aquele lugar do qual não me era permitido sair, o lugar do psicanalista. Que se me apresentou como independente de um consultório tradicional, da existência de um divã e de toda a liturgia clássica: o lugar da escuta e da fala, da interlocução, essência de nosso método. O que me permitiu experienciar mais profundamente o significado da “talking cure”, o nosso trabalho.

4- Desde então tenho tido outras experiências como aquela, com pessoas que vivem no exterior, e que não tem se mostrado significativamente diferentes do meu trabalho em um setting tradicional. Apenas fica mais evidente o incômodo inerente, aquilo que chamo de “lugar do analista”, este lugar tão pouco natural criado por Freud. As falhas consequentes às oscilações da internet jogam uma luz extra e própria às dificuldades presentes em toda comunicação humana e consequentemente em toda análise.

5- “Ingleses e americanos tem tudo em comum exceto a língua”, disse Bernard Shaw, deixando bem claro com essa sua inversão de perspectiva que a língua falada por cada um de nós é muito própria, apesar de na maior parte do tempo, não nos darmos conta disso. É aí que está a essência de nosso método. Conseguirmos um código comum com nosso paciente.

6- Estamos todos nós, seres humanos, em março de 2020, vivendo uma crise inédita na história da humanidade. Estamos em busca de palavras que possam minimamente articular nossa perplexidade diante do fato de termos sido deslocados de nosso lugar ilusoriamente confortável. Foi necessário este golpe para a comunidade analítica se mobilizar como um todo e começar a deixar de lado muitos de nossos preconceitos a respeito do que é essencial para uma análise. O “setting” terrestre está em transformação. Seria inconsequente se aquilo que nossa tradição tem chamado de “setting analítico” permanecesse o mesmo.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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