Observatório Psicanalítico – 193/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Uma ideia sobre a dinâmica da manutenção do poder da elite brasileira
Sylvain Levy (SPBsb)
Após os belos textos (não vou citá-los por receio de excluir algum) publicados no nosso Observatório Psicanalitico nos dois últimos meses sobre discriminação racial e social, assim como sobre o impacto das desigualdades – que sempre existiram, mas trazidas agora à discussão pela pandemia, trago algumas considerações sobre a elite brasileira, com o intuito de aumentar a massa crítica de ideias em circulação.
Até a década de 40, apenas meio século após a libertação dos escravos, a elite brasileira – de origem europeia ou já nativa, predominantemente masculina e branca, não se sentia ameaçada em seus poderes, fossem eles financeiro, militar, político-ideológico, religioso ou mesmo afetivo, este último simbolizado pela aceitação do domínio do pátrio-poder, ao qual eram submetidas as mulheres, crianças, empregados, ex-escravos, entre outros.
Em 1891, o sufrágio no Brasil excluía do direito de votar os sem teto, mulheres, padres, pobres, analfabetos, membros de ordens religiosas e militares. Em 1932 as mulheres foram incluídas no direito a voto. Em 1934 pretos e pobres. Entre 1937 e 1944, o Brasil ficou sem eleições presidenciais em decorrência do Estado Novo, o que evitou riscos para a elite dominante.
A partir da década de 40, a hegemonia dessa elite começou a ser ameaçada por um contingente de mulheres que se empoderavam; pela segunda geração dos libertos; por uma classe média que ascendia em decorrência da educação pública existente, encontrada, notadamente, nas capitais e cidades maiores e pelas novas ideias de liberdade e equidade trazidas pela vitória contra o fascismo.
Enquanto essa mão de obra originada das escolas públicas cumpria sua função de suporte para a burguesia industrial, agrária e comercial, sem competir com a elite ou seus prepostos, a escola pública era incensada e financiada em todos os níveis, do primário ao universitário.
Considerada insumo como a saúde, a educação trilhou, porém, um caminho inverso. A partir de 1953, com a separação do Ministério da Educação e Saúde em dois órgãos distintos, a Saúde foi caminhando, mesmo que lentamente, na direção da estatização e universalização, mas a Educação fazia trajetória oposta, a da precarização do público e do estímulo ao privatismo. Ambos os caminhos, cada um a seu modo, tiveram por função dar suporte à elite existente desde o descobrimento, seja ela econômica, social, cultural e, principalmente política.
Os órgãos da saúde, em análise sucinta, ficaram encarregados pela manutenção da mão de obra em condições de trabalhar e de produzir, prevenindo, recuperando e reabilitando a força de trabalho necessária ao processo produtivo.
Já para a educação ficou reservada a tarefa de entregar para as elites um número limitado de profissionais – habilitados, qualificados, técnicos, graduados e pós-graduados, a conta-gotas, de modo a atender a necessidade de mão de obra sem, no entanto, inundar o mercado de gente que poderia vir a ameaçar essas mesmas elites.
Como resolver essa equação?
E ela se complica ainda mais se lembrarmos que na década de 50 o Brasil ganhou medalhas olímpicas com um negro (Ademar Ferreira da Silva), ganhou campeonatos mundiais de futebol e basquete, torneios de tênis femininos (Maria Ester Bueno), criou o Cinema Novo e a Bossa Nova. Construiu Brasília. Era uma pujança e uma explosão de criatividade e realizações onde estavam incluídos negros, pobres, brancos, candangos nordestinos, caboclos nortistas, mulheres. Pela primeira vez, em 1963, é instituído um projeto de erradicação do analfabetismo. Um país novo se mostrava. Novas oportunidades se apresentavam. Novas gentes surgiam no pedaço. As ameaças às elites se avolumavam e se mostravam com uma atualidade mais aterradora.
Algo precisava ser feito.
Com o golpe de 1964 as ferramentas de transformação surgiram. As escolas públicas foram paulatina e continuamente depauperadas, começando pelo segundo grau – escola normal, clássico e científico, e posteriormente o primário. As universidades foram poupadas da derrocada mas passaram a ser controladas política, ideológica e financeiramente. Ainda eram consideradas importantes para a formação de quadros técnicos no projeto desenvolvimentista do Brasil Grande.
Com a deterioração do ensino público as classes mais abastadas e dirigentes matriculavam seus rebentos nas escolas privadas, mais conceituadas e eficientes. Esses pais, preocupados com o futuro dos filhos e filhas, geralmente buscavam cursinhos de preparação para vestibulares – o atual ENEM – que garantiriam sua entrada nas melhores universidades, que por acaso eram as públicas. É bom lembrar que o custo de uma universidade é muito mais alto que de uma escola de primeiro ou segundo grau, portanto essa conta de graduação deveria continuar “espetada na viúva”, assim como a de pós-graduação e de pesquisas (na CAPES e CNPq). Assim, a elite econômica e social ocupava com seus filhos as vagas nas melhores faculdades, que por “casualidade” eram aquelas que não disponibilizavam cursos noturnos.
Aqueles que precisavam trabalhar durante o dia ficavam excluídos, ou seja, quem não pertencia à elite não frequentava escolas de elite.
Mas é nessas escolas que são mantidas, renovadas ou criadas as novas amizades, e o maior recurso de um político ou aspirante a político é a sua capacidade de fazer amigos e influenciar pessoas. É desse recurso que irão nascer os demais recursos – financeiros, humanos e operacionais, que poderão arar e semear uma carreira política.
E é desse cadinho de eleitos que sairão os fazedores de leis, as quais, naturalmente, irão beneficiar aos financiadores das campanhas e aos representantes da elite dirigente, igualmente beneficiários das mesmas leis. Ao judiciário, tampouco sensível às aspirações populares, resta julgar conforme as leis existentes e fechar esse quadrado vicioso.
Portanto, é da formação e conformação desse quarteto – educação, partidos políticos, legisladores e julgadores, maligno por sua função e não por seus conceitos ou conteúdos, que vem a força de manutenção das elites brasileiras.
A pandemia do COVID-19 veio evidenciar algo que estava escondido: existem pelo menos 76 milhões de visíveis, invisíveis e subvisíveis, que provavelmente sustentam mais 100 milhões de pessoas, significando que 80% da população brasileira necessita do Estado e de seus eventuais governos para subsistirem. Essas gentes não têm condição e recursos para uma vida com autonomia, independência e liberdade. Se necessitam do estado e dos governos, necessitam também de outras pessoas que igualmente não têm o que dar ou de outras pessoas que não querem dar, que não querem abrir mão de nenhum privilegio.
O pesadelo vivido pode levar, inclusive, a uma defesa esquizofrênica: uma morte ou cem mortes é/são uma tragédia, mas mais de 118 mil é apenas estatística.
Vivemos essas realidades (e maldades) há séculos. Transformá-las é possível. Transformá-las rapidamente só por meio de uma revolução, algo não visível no horizonte. Mas como disse a poetisa A.P Arent, é possível vencer o pesadelo pelo sonho.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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