Observatório Psicanalítico – 183/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.
“Um puxadinho de carinho”.*
Sandra Gonzaga (SBPRJ)
“Nos sambas vivem saberes que circulam; formas de apropriação do mundo; construção de identidades comunitárias dos que tiveram seus laços associativos quebrados pela escravidão; hábitos cotidianos; jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, amar, matar, celebrar os deuses e louvar os ancestrais”.
(Luiz Antonio Simas)
Anos 90. A Lapa vivia um tempo de revitalização a partir do Projeto de Reestruturação do Largo da Lapa pela Prefeitura Municipal. A Sala Cecília Meirelles, o Circo Voador, a Fundição Progresso, a Escola Nacional de Música e bares onde se tocava choro e samba, traziam uma nova população para o bairro, jovens universitários que faziam música junto com bambas da velha guarda, uma classe média que ia dançar e ouvir.
Num desses bares, escondido em uma esquina de frente para os Arcos, ouvi Teresa Cristina pela primeira vez. Uma moça tímida e franzina, de voz forte e repertório fincado nas raízes do samba. Venho acompanhando sua trajetória e sua visibilidade maior no cenário musical, mas nada que apontasse para a dimensão do fenômeno que toma as noites e invade as madrugadas nesses tempos duros. Alertada por uma paciente, resolvi conferir. E a vida ficou maior!
TT, como é chamada pelos milhares de “Cristiners” que acompanham suas Lives diárias, preenche a tela com seu rosto iluminado, uma diversidade avassaladora se apresenta. A moça tímida do Bar Semente dá lugar à mulher negra, suburbana, cheia de força, espontaneidade e generosidade, que ri e chora, que dá voz e tribuna a uma periferia potente e talentosa, mostrando que existe poesia, vida musical, que existe vida cidadã além túnel (subúrbio e periferias do Rio).
A jornalista Eliane Brum – em um depoimento indignado onde denuncia o genocídio do povo negro, dos povos da floresta e da própria floresta, escancarado pelo desgoverno atual durante a crise sanitária mais grave dos últimos 100 anos – nos fala que é preciso deslocar o conceito do que é centro e do que é periferia. Sustenta que a Amazônia é centro, que Maré, Paraisópolis, Ceilândia, Xingu, povos Yanomanis são centro. Leblon e Ipanema são periferia.
Jurema Werneck, da Anistia Internacional, tem destacado o papel de protagonismo e liderança da mulher negra na luta contra o racismo, e o filósofo e jurista Silvio Almeida concorda, afirmando que a luta antirracismo não pode estar dissociada da pauta do feminismo.
Teresa Cristina assume esse lugar sem pretensão nem arrogância, mas com garra e simplicidade, tipo “papo reto” quando fala, por exemplo, da concorrência entre as cantoras para eleger quem é a melhor do Brasil, afirmando como isto as enfraquece como mulheres e potencializa o discurso machista. Ou ao acolher, com uma carinhosa reprimenda, a jovem flautista negra que insiste em agradecer exaustivamente a oportunidade que Cristina lhe oferece, sem poder valorizar o talento que sustenta sua presença ali.
No 13 de maio, priorizando a comemoração do dia dos Pretos Velhos: “olha, pessoal, vocês me dão licença, mas hoje eu vou chamar principalmente gente preta”, lembrando que a noite seria para falar e cantar a ancestralidade. A tela, então, se divide e se multiplica, surgem as vozes do jongo, os cantos e pontos de umbanda e candomblé louvando as religiões de matriz africana, cantados a capela por Teresa e pelos que chegam, além de poesia e canções, como a composição cantada pela autora Jessica Gaspar:
“Deus é uma mulher preta
Deus é uma mulher preta
E por natureza sei que vou sobreviver
Deus é uma mulher preta
Bença minha mãe para lutar e escreviver
A morte meu país genocida reservou pra mim
Porém minha alma não é uma semente daqui
É semente da mente de deusas de lá de onde eu vim
Rainhas de ontem e hoje florescem em mim
A morte atravessa os sonhos de pretos daqui
Encaro e grito pro Estado, não saio daqui
Minha mãe me abençoe e dê forças pra eu prosseguir
Seus olhos d’água refletem a força que mora em mim
Deus é uma mulher preta
E por natureza sei que vou sobreviver
Deus é uma mulher preta
Bença minha mãe para lutar e escreviver”.
Num caldeirão criativo e diverso, Teresa vai recebendo artistas desconhecidos, compositores, instrumentistas, cantoras e cantores consagrados, comunidade LGBTQIA+, personalidades da política e também encontra espaço para nos apresentar sua mãe de 80 anos, em Lives aos domingos. Nesses dias, ela se retira da cena, fica ao lado selecionando as letras das músicas, e deixa D. Hilda brilhar cantando um repertório vastíssimo e belo, que abarca décadas do nosso cancioneiro. Impossível não cantar junto. Um exemplo comovente de reverência, respeito e cuidado tão necessários nos tempos atuais.
Para além da constatação da força de Eros que habita essa mulher e nos socorre com afeto e arte nessa difícil travessia, acompanhar encantada a Rainha das Lives me fez pensar nas perguntas que começam a ser feitas e precisam reverberar em nós psicanalistas. Pensar no racismo estrutural que molda nossos sentimentos inconscientes, como nos ensina Silvio Almeida, é abrir espaço para discutir, dentre outros temas silenciados: por que temos tão poucos negros em nossas Sociedades Psicanalíticas?
*título soprado por Teresa Cristina que assim se referiu às suas Lives.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Segue o link de uma Live:
https://www.instagram.com/tv/CAJ2ijXnXZ3/?igshid=2kcw0e95of9i
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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:
https://febrapsi.org/observatorio-psicanalitico/