Observatório Psicanalítico – 106/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Um dia na vida ou a cegueira in/voluntária
Liana Pinto Chaves (SBPSP)
Acordo, tomo banho e enquanto me visto, fico entre ligar a radio Cultura ou a Globonews. Claro que é melhor começar o dia com boa música, mas às vezes, aliás sempre, ultimamente, tem alguma situação urgente que faz a gente querer se informar. Apesar de sabermos que só tem vindo notícia ruim. Dilema de rico esse, que lembra “O Jardim dos Finzicontini”.
Muito desse cenário desolador só vemos pela janela do carro ou pelo cinema e TV. Mas o ar está empesteado. Lembra os tempos mais assustadores da ditadura, em que todos – pobres e ricos – tinham medo e de noite sonhavam que estavam sendo perseguidos e torturados. E vai chegando perto…
Temos sido muito fustigados por muitas tragédias, frutos do descaso ou diretamente do crime, violências, pelo festival de besteira que assola o país. Muitas horas precisamos buscar ânimo em algo inspirador. Por isso, cito uma passagem do longo poema “O Horror de Conhecer”, de Fernando Pessoa:
Às vezes passam
Em mim relâmpagos de pensamento
Intuitivo e aprofundador,
Que angustiadamente me revelam
Momentos dum mistério que apavora;
Duvidosos, deslembrados, confrangem-me
De terror, que entontece o pensamento
E vagamente passa, e o meu ser volve
À escuridão e ao menor horror.
Este poema sempre me acompanhou, tão psicanalítico; sempre me ajuda em horas escuras, como esta que estamos vivendo.
Por falar em chegando perto: outro dia uma colega próxima trafegava pela Avenida Sumaré, perto da minha casa em São Paulo, e fez um sinal para um carro de um amigo que passava, brincando. Um instante depois um carro de polícia se emparelhou com o seu e um policial se pôs a gritar para ela com truculência: ‘eu vou te mandar para o cemitério!’ Ela perplexa não estava entendendo nada. Resultou que o policial pensou que ela havia lhe endereçado um gesto obsceno. Ele perseguiu-a mais um pouco e continuou repetindo sua ameaça alucinadamente.
Mas de todas (difícil escolher), a notícia que mais me impactou ultimamente me chegou por um filme feito pelo Conselho Federal de Psicologia denunciando o Decreto 9759, assinado pela presidencia da república, diminuindo de cerca de 700 conselhos previstos pela política nacional de participação social para menos de 50. São comitês, comissões, grupos colegiados, equipes, foruns, que servem para que a população possa propor políticas públicas, participar das discussões relevantes e fiscalizar as ações do governo. São espaços onde o poder público e a sociedade civil organizada podem dialogar e discutir propostas.
Segundo o governo atual, haveria uma ‘gigantesca economia’ para o estado, além de que essas entidades são “aparelhadas politicamente, usando nomes bonitos para impor suas vontades.” Não são apresentados dados que justifiquem tal economia, uma vez que boa parte da participação é de caráter voluntário. E sabemos que participar significa assumir um papel ativo, um protagonismo na vida pública.
Dentre os conselhos visados estão os que tratam da biodiversidade, dos direitos humanos, da erradicação do trabalho infantil, das pessoas com deficiência, das questões LGBT, da transparência pública e combate à corrupção, entre outros.
É um completo desmonte da participação do cidadão comum na vida societária. É mais um ponto de asfixia dessa mentalidade totalitária. É um verdadeiro cala boca.
A vociferação nas redes sociais em grande parte é apenas uma descarga e não uma reflexão. Acaba dando uma indigestão, uma saturação, daí a tentação do escapismo e da alienação. E daí também a necessidade de um pensamento potente.
Como olhar para tudo isso psicanaliticamente? A vocação da psicanálise é a livre expressão, é a liberdade de pensamento, é dar voz a cada um. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre manter a capacidade de se indignar e reagir, combater a desesperança e o medo, através do pensamento. Muito nos ajuda o observatório psicanalítico nesta tarefa. Estamos juntos.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).