Tempo morto: cinema e pandemia

Observatório Psicanalítico – 180/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.

Tempo morto: cinema e pandemia

Silvana Rea (SBPSP)

Em tempos de pandemia e isolamento, lembrei do filme “A aventura”, de Michelangelo Antonioni, que no festival de Cannes de 1960 dividiu posições: foi, ao mesmo tempo, aclamado como um dos melhores filmes já feitos e acusado de ser entediante, insuportável.

A estória é simples: amigos da alta burguesia romana partem em um cruzeiro pelas ilhas do arquipélago Eoleo na Sicilia, onde Anna, integrante do grupo, desaparece. A estrutura dramática desenvolve-se a partir da procura por ela, e, nesta busca, Antonioni exige de seu espectador uma experiência de tempo particular, referida como tédio por parte dos críticos. Aquilo que sentiram como insuportável tem a ver, parcialmente, com a opção do diretor por privilegiar as sequências em tempo morto para marcar a vivência dos personagens. 

O tempo morto é um recurso da linguagem cinematográfica na qual a narrativa se constrói de maneira mais lenta que a estória que se quer contar,  criando um período de tempo que se mantém depois que a cena termina. Assim, estabelece um “depois” da ação consumada, um espaço onde o tempo é suspenso. Em “A viagem”, os personagens são atravessados e acometidos pelo que Deleuze chamou de doença da temporalidade – em situação niilista, eles também próximos do tédio.

Antonioni soma o tempo morto ao fio narrativo do desaparecimento de Anna, que cria uma urgente expectativa em relação ao seu paradeiro. Uma urgência que não se completa. Pelo contrário, arrasta-se na dilatação temporal. E como a moça não é encontrada,  o espectador fica abandonado sem uma resposta clara: teria se acidentado ou suicidado? Teria sido sequestrada? Fugido? Tudo permanece no ar.

Em isolamento, somos um arquipélago. Confinados em ilhas, sem poder contar com a noção de cidadania – um pensamento coletivo que nos uniria em um espaço comum.  A pandemia nos remete ao desamparo pela  ausência de notícias confiáveis e de uma liderança consistente. Somos espectadores abandonados, como no filme de Antonioni: à deriva em um mar de informações e sem a possibilidade de uma posição esclarecedora que oriente as nossas expectativas.

Com o início da pandemia e suas restrições de convívio, organizamos rapidamente nossa vida cotidiana e profissional da melhor maneira possível. Construímos a tal nova normalidade com esmero criativo, mas o desconforto permaneceu na experiência temporal. Porque vivemos um tempo suspenso, fora do tempo ordinário da nossa vida cotidiana de então. Muitos de nós sentem e escutam relatos de uma sensação de lentidão estranha, uma espera por algo que não vem e de uma urgência que cai no vazio, como o tédio que o tempo morto provocou em Cannes. E aqui, inevitável lembrarmos que o tédio indica  desinvestimento, desligamento, a perda de sentido e de criatividade psíquica. 

A pandemia e suas decorrências deixam evidente que, nessa experiência temporal que vivemos, o que está em questão é a finitude da existência e o reconhecimento do tempo escasso, como Freud já nos dizia em “Sobre a transitoriedade”. Certos fatos deixam marcas nas pessoas e na história, e a situação sanitária, política e econômica que vivemos certamente deixará, pois aponta para a dimensão trágica da vida. Este tempo suspenso vivido no isolamento torna-se desconfortável, pois é a fenda por onde escapa aquilo que escapa à nossa nova normalidade, aquilo que gostaríamos de não ver: a proximidade da morte, o luto em curso por aqueles que se foram e pelo que se foi. A pandemia  evidencia também que não há para onde voltar, uma vez que esta experiência mudará aqueles que se permitiram ser afetados por ela.

Não por acaso a minha lembrança à filmografia de Antonioni com seu tempo morto. E particularmente sua trilogia da incomunicabilidade, composta por “A aventura” (1960), “A noite” (1961) e “O eclipse” (1962), que apresenta um mundo povoado por pessoas que se organizam de maneira satisfatória e bem sucedida, mas por onde vaza o questionamento sobre o sentido da vida.

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