Observatório Psicanalítico – 101/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Sobre o que não se pode contar
Ludmila Y. Mafra Frateschi (SBPSP)
“Situações de grande violência e silenciamento social golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social) constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as pessoas, causando um prejuízo na confiança no entorno social, na família, na comunidade, nas estruturas do governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz de constelação identificatória, base do sentimento de pertencimento à humanidade e da própria identidade, se abala de forma profunda alterando seu funcionamento”. (Da Silva Júnior, M.R., 2009)
A psicanálise, como ferramenta, escuta não apenas aquilo que se diz, mas aquilo que se cala. O que se cala porque é recalcado, mas também o que se cala porque não pode ser dito, não se inscreve, não tem lugar. A censura, para a psicanálise, é, de acordo com Laplanche e Pontalis (2001) a função psíquica que interdita aos desejos inconscientes e às formações que deles derivam o acesso ao sistema pré-consciente – consciente. Ela deforma o desejo e desvia a pulsão de sua meta como forma de defesa contra a angústia – angústia que levar esse desejo a cabo acarretaria. Esse mecanismo é essencial para a vida em sociedade, pois permite a modulação psíquica do que pode ou não ser feito, bem como a busca de satisfações compensatórias, para que a vida comum com outros sujeitos se torne possível.
No entanto, quando a censura se faz demasiada, os desejos e impulsos insistem, exigindo expressão. Neste sentido, a psicanálise reforça uma distinção importante entre o que se diz, se expressa por meio da fala (e, desse modo, é simbolizado) e o que se faz como ato impensado e imediato, especialmente no que se refere às atitudes de ódio e violência.
Há leis que proíbem a apologia a crimes de ódio ou criminalizam declarações com conteúdo discriminatório. A partir delas censura-se, também no sentido psicanalítico, impulsos que violentam o outro. Trata-se de um tipo de lei fundamentada na construção histórica de que determinados grupos vêm sendo exterminados e que precisamos de novos mecanismos de regulação do laço social para evitar isso. Elas também são construídas, ao menos no Estado Democrático de Direito, de forma a articular os diferentes jogos de força presentes na sociedade: movimentos sociais, poder legislativo, poder executivo, poder judiciário. Ainda assim, especialmente até que os sujeitos possam se reconfigurar, de fato podem forçar o recalque intenso de impulsos destrutivos presentes em todos nós que precisam encontrar outros modos de vazão. Há que se ressaltar, porém, a diferença entre quem fala no ambiente privado, de forma a dar palavra a um desejo secreto, e quem fala no ambiente público, muitas vezes a partir de uma posição institucional. Quando quem fala ocupa uma posição de poder, empresta todo esse poder ao que diz.
Outras censuras operam de outra maneira. É o caso quando o grupo que ocupa o poder executivo decide a que informações e opiniões o povo deve ou não ter acesso, a despeito das construções históricas e das negociações institucionais. Neste caso, tende-se a escolher uma única versão da história para ser contada, anulando as outras, e muito raramente a censura aí está ligada ao aprofundamento do laço social e sim à manutenção daquele governo e de sua ideologia no poder. Não inibem, mas silenciam, buscando aniquilar aquilo que aparece como impulso contrário ou de oposição.
Entre aqueles que se propõem a pensar os efeitos da ditadura na sociedade brasileira contemporânea, há dois debates fundamentais: o primeiro diz respeito ao efeito da lei de anistia (ampla, geral e irrestrita). Muitos dizem que ela foi “aquela possível” na época. Outros defendem que a anistia brasieira iguala o crime individual ao crime de Estado e não considera o direito de defesa dos cidadãos à situação de opressão a que foram submetidos. A partir desta reflexão, parece aplicável a noção ferencziana de desmentido: quando o que se passa não é uma distorção ou recalque da história, mas uma inversão desta que nega / invalida a experiência vivida na realidade, isso tem efeito enlouquecedor. Cito aqui um trecho de 1984, de Orwell (2009):
“Entendo COMO, mas não entendo POR QUÊ.
Considerou a hipótese, como tantas outras vezes antes, de ele próprio ser um doente mental. Talvez um doente mental fosse simplesmente uma minoria de um. Houvera um tempo em que se considerava sinal de loucura acreditar que a Terra girava em torno do Sol. Hoje, o sinal de loucura era acreditar que o passado era inalterável. Ele podia ser o único a acreditar naquilo e, se fosse o único, seria um doente mental. Mas a ideia de que talvez fosse um doente mental não chegava a perturbá-lo muito: o horror estava em também existir a possibilidade de que estivesse errado”.
O segundo debate trata da publicação de testemunhos pessoais daqueles que viveram as práticas mais bárbaras da ditadura – muitos defendem que se trata do único modo de fazer presente a história de um país que insiste em silenciá-la. Outros, no entanto, destacam o quanto se desloca um debate sobre o laço social para experiências individuais, trazendo à tona experiências trágicas com que as pessoas eventualmente até se identificam, mas não reconhecem como suas.
Debieux Rosa e Gagliato (2011) acrescentam ainda uma leitura adicional: citando Lacan e suas discussões sobre a resistência ser sempre uma resistência do analista, os autores propõem que a dificuldade de quem viveu a violência de Estado contar suas histórias e fazê-las presentes talvez se deva também à dificuldade de encontrar quem escute. Como se todos estivéssemos impossibilitados de ouvir, defendidos de entrar em contato com o horror que tal violência provoca, tanto pelo medo de sermos submetidos a algo semelhante, como pelo contato com a nossa fantasia recalcada de tirania (a la Totem e Tabu), que ali se legitima.
Não são novidade para ninguém os diversos estudos internacionais sobre a relação entre a vivência de períodos ditatoriais e as taxas de adoecimento, suicídio, genocídio nos períodos subsequentes, taxas aliás bastante altas por aqui (ou se são, é porque algo impede o dar-se conta). Oitenta tiros. Uma vereadora morta por sua atuação política. 160 pessoas assassinadas por policiais em um mês no Estado do Rio de Janeiro. Mais ativistas mortos que em quase todos os países do mundo. Ao invés de estarmos fazendo lutos e elaborando a nossa experiência recente nós seguimos repetindo o que há, o que houve, o que haverá, já que a não inscrição do trauma também impede a instauração de tempos diferentes.
Encerro com Marcelo Viñar (2014):
“Há um século, em Totem e Tabu, Freud assinalava que nenhum ato significativo de uma geração – ainda mais se for infamante ou vergonhoso – poderia ser ocultado da seguinte. A intimidade familiar é a caixa de ressonância que amplifica a peripécia da dor interior do traumatizado. O assédio recorrente de uma origem vergonhosa e humilhante transita sem fim ao longo das gerações, como sagazmente sugeria Michelet, cento e setenta anos atrás. A nobre tarefa das nossas instituições solidárias e dos nossos consultórios é necessária, porém não suficiente. Não se trata do uso midiático da tortura e do genocídio como espetáculo do horror, comovedor, mas no fundo apenas espetáculo; trata-se de vencer o escândalo e a repugnância que nos provocam o devolver à luz, à cena pública, uma das facetas mais abjetas de que nossa espécie é capaz”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).