Observatório Psicanalítico – 140/2020
Observatório Psicanalítico – 140/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Sobre determinado discurso presidencial e o empoderamento coletivo.
Manola Vidal (SPRJ)
O Presidente e líder eleito da Nação Argentina, Alberto Fernández, fez um discurso em dezembro último no qual propôs o que chamou de Pacto Cidadão. Nele, convoca à criação de um novo contrato social, capaz de viabilizar o enfrentamento de duas questões contemporâneas fundamentais: a iniquidade social e as mudanças climáticas. Em relação a iniquidade social, o discurso se inicia com um apelo a dois tipos de memória coletiva: a cronológica e a afetiva.
A memória cronológica é apresentada pela lembrança dos 73 anos do fim de um regime ditatorial dos mais violentos na América Latina. A memória afetiva, mais complexa, foi relacionada ao chamado por fraternidade, inclusão e solidariedade mas possuiria, como um de seus componentes, uma determinada forma de barreira ao processo civilizatório denominada pelo presidente como a da barreira afetiva. Em relação a superação da barreira afetiva ao processo civilizatório propõe incluir nas políticas públicas as demandas dos movimentos sociais, condição fundamental para o equilíbrio democrático.
Dentre os movimentos sociais foi destacado o feminista, e com a chamada “Ni una a Menos”, a meta de erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres é apresentada. O compromisso com o movimento social feminista, contido neste discurso, remete-nos à dialética do reconhecimento através do laço social, no qual o poder político representado pelo governo eleito passa a reconhecer e dialogar com um grupo até então excluído deste diálogo, o das mulheres. O discurso, então, propõe que será através desta dialética, a do reconhecimento do outro excluído e a consciência deste, de sua condição de exclusão, que as barreiras afetivas ao processo civilizatório serão superadas.
Acredita-se, aqui, que a inclusão política do movimento social feminista, para se dar de forma a favorecer o movimento civilizatório, pode ser compreendida a partir da relação entre o empoderamento e a criatividade.
O conceito de empoderamento foi adaptado para nossa língua como equivalente à noção de empowerment, em inglês, e se refere a uma prática que emergiu no movimento feminista. Consiste em tomar consciência de si mesma, das próprias possibilidades, em um processo de afirmação decorrente da interação e da troca de experiências com outras mulheres, em busca de uma qualidade de vida melhor. Contrapõe-se às limitações impostas por uma cultura patriarcal, ligada aos casos de violência, subserviência, isolamento e discriminação.
Compreendendo que toda a carga de opressão e dominação se liga à experiência afetiva, temos que a experiência de empoderamento faz parte do processo de superação das barreiras emocionais. Os grupos, nos quais as mulheres fazem seus relatos pessoais e se auto-avaliam e nos quais a palavra, antes aprisionada pelas estratégias de assujeitamento, passa a circular, permitem a construção de um vínculo afetivo e o acesso a outros modelos de identificação e, ao mesmo tempo, o relato e a auto-avaliação em grupo se tornam um ato político.
Paradoxalmente, não seria possível empoderar ninguém, pois este seria o trabalho de um processo de elaboração psíquica realizado pela relação do sujeito consigo mesmo, mas que somente é possível existir no âmbito coletivo. Assim, o processo de empoderamento se dá na relação entre o social e o individual e está ligado a uma experiência afetiva frequentemente descrita como sendo de energia, consciência de si, ânimo e alegria.
Podemos então relacionar ao empoderamento o conceito de criatividade: o potencial criativo humano (presente em todos) é favorecido por trocas em ambientes facilitadores. Desta forma, empoderamento e criatividade são processos de produção subjetiva, intrapsíquicos e intersubjetivos articulados à dinâmica do laço social. Dinâmica que, assim, exige mais do que reconhecimento pelo poder governamental da situação de exclusão e da consciência daquele grupo excluído do pacto social.
Kristeva nos afirma o quão fundamentais são as capacidades de criar e interpretar e que a imaginação é o espaço psíquico essencial da transformação social. Em seu trabalho sobre o senso de revolta, diz que é na recuperação da imaginação no espaço psíquico que se produz uma revolução. A revolta será uma revolta íntima, de recuperação da capacidade de imaginar e criar, que se dá no espaço psíquico e nos permite lidar tanto com os traumas internos como com as agressões sociais.
Assim, criando significado e ultrapassando a lógica do reconhecimento pelo poder político, representado pela figura do líder, produziria-se o empoderamento que, somado a uma identificação amorosa com o outro, venceria as barreiras emocionais ao processo civilizatório.
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