Observatório Psicanalítico – OP 216/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
“Sobre a transitoriedade”: Travessia de uma Pandemia em 2020
Denise Aizemberg Steinwurz (SBPSP)
Em 2020, o ano em que se comemorou o centenário da pulsão de morte, quem poderia imaginar que, por conta de um vírus, seríamos assolados pelo risco de morte iminente e por tantas consequências a partir dele?
Com as fronteiras fechadas no mundo inteiro, vivemos este ano uma sobrecarga de estranhezas: um mundo novo tão diferente que a pandemia pela Covid-19 apresentou. Providências de ordem prática que precisaram ser tomadas desde março – uso de máscaras, distanciamento social, excesso de informações que sequer conseguimos acompanhar, nomear e elaborar – trouxeram grandes repercussões emocionais. Fomos subtraídos da convivência social e postos em estado de grande desamparo e insegurança, por mais tempo do que imaginamos, quando isso tudo começou. Obrigados ao isolamento e confinados em nossas casas há quase 10 meses, passamos por graves impactos na saúde da população e na economia, e sofremos sem saber como será o mundo em 2021.
No texto “O estranho”, de 1919, Freud fala do Unheimlich, esse estranho assustador, que não é conhecido, mas é familiar, algo que não sabemos abordar. Para Freud, quanto mais orientados estamos, menos temos a impressão de algo estranho em relação aos objetos e eventos. Atualmente, porém, seguimos mais desorientados do que nunca. A pandemia nos arrebatou no início do ano, e parece que ainda não pudemos nos levantar com segurança. Ainda necessitamos tomar todos os cuidados possíveis.
O Coronavírus é minúsculo, invisível e ameaçador, mas se faz ver a cada vez que alguém morre, ou nas reportagens, ou quando vemos tantas pessoas com equipamento de proteção, luvas, máscaras e faceshields, fazendo as regiões parecerem zonas de guerra; de certa forma, são. Em um encontro virtual promovido pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, sobre a psicanálise e os conflitos emocionais em tempos de covid, Zusman (2020) avaliou que vivemos outro paradigma: “a recomendação de distanciamento físico é uma mudança de paradigma, já que somos gregários por natureza; precisamos de outros humanos para nos constituir humanos”. Hoje, porém, o outro, o espaço e a proximidade parecem nossos inimigos.
As impressões sobre um tempo semelhante ao que vivemos estão descritas por Freud, em um texto publicado em 1916, a partir de uma conversa com um poeta, um ano antes da guerra: “um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis” (p. 347).
Essa pandemia é, sem dúvida, um momento assim, uma situação traumática relacionada a perdas significativas. O novo Coronavírus atacou partes fundamentais do sistema imunológico de defesas e de nossas vidas. As defesas emocionais que erigimos buscam lidar com o clima de insegurança e ameaça; para Zusman (2020), elas “não são por si só patológicas; elas vêm para nos ajudar e se tornam patológicas quando se instalam sem podermos recompor nossas defesas habituais”. Nem todos conseguem se recompor satisfatoriamente. A possibilidade de elaboração das angústias ante à pandemia depende da estrutura emocional de cada indivíduo. Por isso, vemos pessoas com um nível normal de angústia, dada a estranheza do que vivemos; porém, vemos pessoas em quem – frente a essa situação inesperada, geradora de angústias que não podem ser digeridas pelo aparelho psíquico – isso transborda para o corpo que adoece. Se a mente não dá conta, é no corpo que aparecem as manifestações. Dito de outro modo, na ausência do símbolo e da palavra, é o corpo que sofre: via atuação (formas brandas, como andar pela casa, bater nas paredes, reclamar ou brigar com alguém, até formas mais graves, como o suicídio); via adicção (compulsão alimentar, uso excessivo de bebidas, cigarros e drogas); ou via psicossomática.
Em um capítulo do livro “Dor psíquica, dor corporal: uma abordagem multidisciplinar”, expliquei que as organizações psicossomáticas diferem pelo sistema defensivo, pelo nível evolutivo e pela quantidade e qualidade das representações mentais. São as pulsões de vida e de morte que põem em movimento o sistema; há organizações mais emaranhadas na expressão corporal e outras mais próximas da neurose. Quanto mais evoluído o sistema representacional e a simbolização, melhores as defesas para lidar com movimentos regressivos (Steinwurz, 2017).
A situação traumática atual que vivemos reativa situações traumáticas precoces, expressas tanto no psíquico quanto no somático, como resultado das modificações na estrutura psicossomática. Quadros somáticos podem surgir ante um evento traumático e depois desaparecer; porém, podem se instalar como doenças crônicas que geram incapacidade na vida pessoal e profissional, em diversos graus.
Quando isso acontece, são um sinal de que algo não correu bem no princípio do desenvolvimento. Houve uma dissociação na personalidade, que impede o indivíduo de, agora, perceber a relação entre a disfunção somática e seu psiquismo e integrá-los; sem conseguir uni-los, adoece.
No livro “A psicossomática do adulto”, Marty (1993) define a função materna como determinante na constituição do psiquismo, bem como na organização psicossomática. Um vínculo afetivo precário com a mãe cria matrizes traumáticas no desenvolvimento psíquico.
Da mesma forma Winnicott, em 1949, no texto “A mente e a relação com o psicossoma”, defenderá que o ambiente é fundamental no desenvolvimento emocional. Uma mãe não suficientemente boa – com uma maternagem precária ou inconstante – interrompe esse processo, levando à dissociação entre psique e soma, característica da psicossomática. Sem uma preocupação materna primária, a mãe não oferece suporte egoico para o bebê, que é deixado por conta própria. Ele tem que se haver com suas próprias necessidades quando, muito precocemente, a mãe deveria cuidar delas.
A doença psicossomática seria um pedido de socorro para que se constitua esta integração. Cada sintoma terá um significado emocional, do qual o ego tira proveito para alívio dos conflitos. Estes sintomas orgânicos podem evitar que o paciente desenvolva sintomas psicológicos mais severos. Portanto, com a melhora do orgânico, o ego terá de encontrar outros meios de vazão para as tendências antes aliviadas pelo corpo.
Na busca desses outros meios, no isolamento que vivemos, o tempo será um dos aliados para tentar fazer frente à sensação de desamparo e em contraponto a tanto que perdemos. Desde março, tivemos mais tempo para atividades diferentes, como pintar, bordar e cozinhar, e para aproximar-se de amigos e parentes ainda que virtualmente. Na psicanálise, além das readaptações necessárias à atividade clínica e aos eventos científicos, vimos um aumento da disposição de analistas para trabalhos voluntários dirigidos a pessoas em estado de vulnerabilidade e a profissionais da saúde da linha de frente com os pacientes com Covid-19. Ganhamos tempo – já que não precisamos mais nos deslocar para os diferentes lugares de nossas atividades –, mas paradoxalmente, o tempo foi sendo preenchido com mais e mais coisas. Uma reviravolta na noção de tempo, ao que, até então, era-nos habitual.
Além disso, contamos o tempo para a chegada da vacina, esta que – em alguns momentos, acreditamos – nos restituirá tudo aquilo de que fomos privados nestes meses; em outros momentos, porém, lembramos que ainda teremos muito tempo até que todos tomem a vacina; portanto, teremos que continuar da mesma maneira: acreditando, olhando para a realidade, nos frustrando, renovando nossos recursos psíquicos e lutando mais um tanto.
No belíssimo texto “Sobre a transitoriedade”, em que relata uma conversa sobre o tempo, Freud (1916) fala sobre o significado dele para cada um: “o poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade” (p. 345). A evidência de que tudo que é belo e perfeito findará pode dar margem a esse pesado desalento, ou levar à rebelião contra tal fato: “de uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição” (p. 345). Essa exigência de imortalidade, porém – alerta Freud – é um desejo nosso, não uma realidade.
E como chegamos ao fim do ano, ainda mergulhados nesta pandemia? Descrentes e pessimistas como o poeta? Adoecendo no corpo ou na alma? Ou conseguimos lançar mão de defesas psíquicas, meios mais elaborados e alternativas criativas? A necessária adaptação às adversidades para enfrentar essa crise nos colocou em contato com nossa capacidade de resiliência, o que nos faz crescer emocionalmente.
Em recente artigo publicado na Revista Trieb, Goldfajn (2020) avalia como os analistas estão vivendo este momento em que, como ela descreve, “espiamos atônitos às catástrofes político-sociais anteriormente anunciadas pelo mundo e especialmente em nosso país. Notícias de uma realidade explosiva, em que o medo da morte e da perda de gente querida promove luto e negação em um movimento de gangorra constante” (p. 90). Ela, porém, vislumbra possibilidades: “Em meio à pandêmica crise em que nos encontramos, exercitamos, na relação psicanalítica como em qualquer outra relação humana, a elasticidade como forma de sobrevivência. Em face de adversidades, somos capazes de colaborar, de criar e de nos adaptar. Mas somos também ambíguos: frente à destrutividade de um vírus desconhecido, somos solidários, ao mesmo tempo em que protegemos primeiro o que nos é mais caro, nossas famílias, nosso sustento, nosso narcisismo. Assim, vamos ensaiando fazer o que fazíamos antes, mas de forma adaptada, no interior de espaços que agora se separam apenas pelo hífen, do home-office, em uma versão integrada de representações internas e externas”.
As nossas análises e as análises que oferecemos será certamente um recurso para criar e recriar, por meio do encontro analista-analisando, condições favorecedoras da ampliação do repertório psíquico, para que os conflitos possam ser pensados e experienciados ao invés de depositados no ato ou no corpo. Aproximando-nos de nossas vozes internas, podemos ajudar nossos pacientes a, da mesma forma, se aproximarem de suas próprias vozes. Frente a mudanças catastróficas e traumáticas provocadas por um vírus que Goldfajn (2020) descreve como fantástico e real ao mesmo tempo, ela comenta sobre a complexidade deste encontro, nas atuais circunstâncias: “quando o endereço do consultório desaparece como marco do encontro analítico, separa-se a justaposição entre o lugar concreto e simbólico do encontro, provocando ajustes no enquadre. Analistas e analisandos tornam-se parceiros exploradores dos elementos de reconstrução do enquadre analítico. Para o enquadre renascer, é importante justapor, então, a adaptação e a flexibilização do enquadre presencial para o enquadre eletrônico (e-setting)” (p. 88).
Na atual pandemia, tivemos de migrar para o espaço virtual que, para Goldfajn (2020), é um novo domínio, com novas temporalidades. “Somos transportados ao ciberespaço, com uma temporalidade distinta, onde os processos transferenciais não se medem mais pela hora de cinquenta minutos” (p. 89). Para a autora, vivemos uma revolução que ocorreu em um clique, de um dia para o outro, de acordo com a progressão do contágio viral pelo mundo. Por certo, tivemos e temos de nos reinventar novas maneiras, nos adaptar a novas regras e viver os lutos infelizmente necessários.
Tomo novamente as palavras de Freud (1916), quando fala da necessidade de renunciarmos ao que era precioso mas terminou: “o luto […], por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes” (p. 347-348). Que em 2021, nossa reconstrução, no pós-pandemia, seja firme, rica e forte.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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