Observatório Psicanalítico – 187/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.
Sem cem mil brasileiros
Bernard Miodownik (SBPRJ)
Há números que são emblemáticos. Ao se falar em 100 mil, entende-se que uma ordem de grandeza diferenciada foi alcançada, seja positiva ou negativamente. Quando se comenta, por exemplo, que com 100 mil de uma determinada moeda compra-se muito pouco, então a moeda não vale nada.
A construção do estádio do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, exaltado por ter capacidade para mais de 100 mil torcedores (quantos e quantos jogos aquele gigante acolheu muito mais gente!), levou o futebol brasileiro a um patamar que, bola no chão, só alcançaria oito anos depois. Foi o mítico Maracanã, hoje rebaixado a receber ínfimos 78.838 espectadores, que anteviu o lendário estilo brasileiro de jogar futebol.
Há pouco mais de 52 anos, a passeata dos 100 mil no Centro do Rio de Janeiro agitou o país num momento turbulento. Mobilizar uma grande massa sem os recursos tecnológicos atuais e sem contar com qualquer apoio oficial, foi uma façanha inédita que gerou tamanha perplexidade no poder que, à ditadura militar, somente restou endurecer o regime. A sequência da história já se conhece.
Estamos agora diante de outros 100 mil. Dessa vez, sem a mágica do futebol que tantas alegrias trouxe a esse país, como também sem a esperança – ilusória, sem dúvida – de que o povo unido jamais seria vencido. O país alcançou, em cinco meses, a triste marca de inimagináveis 100 mil óbitos por Covid-19. O que dizer, mais do que já foi dito, da incompetência, da inépcia, da incúria, da ignorância, da ignomínia, da imoralidade, da indecência, da indignidade, da insensatez, da insensibilidade, da indiferença que construíram essa tragédia? Como já foi amplamente repetido, naturalizou-se a “estabilidade” de 1.000 mortes diárias, seja pela parcela da população anestesiada à dor e ao sofrimento coletivo por conta da luta pela sobrevivência, ou pela parte talvez cúmplice da descompostura, do desprezo, da desconsideração governamental que entrou em campo durante a pandemia.
A gripe espanhola passou há cem anos, e pouco ficou dela no imaginário coletivo, apesar das referências de ter causado milhões de vítimas e número semelhante de sujeitos traumatizados – entre os quais Freud, que perdeu sua filha Sophie -, muitos impossibilitados de elaborar seus lutos, esmagados pela dimensão da catástrofe mundial. Interessante procurar entender porque a gripe espanhola ficou pouco representada nas artes em geral que, sabemos, é uma forma tradicional da humanidade elaborar traumas individuais e coletivos.
Teria sido a proximidade da Primeira Guerra Mundial e seu grande morticínio? No Mal-estar na cultura, Freud diz que o desamparo maior que aflige ao homem é a ameaça que vem a partir de seu próprio semelhante, como nas guerras e na violência cotidiana. Por isso procuramos aperfeiçoar o processo civilizatório para mitigar os temores e possibilitar uma melhor convivência, o que Freud chegou a considerar uma tarefa impossível. Em relação às ameaças vindas do próprio corpo, outra das causas do mal-estar, os avanços na medicina e na biologia procuram consolar os indivíduos com a promessa de que isto é possível. Quanto às ameaças vindas da natureza, essas, vez por outra, sobrevêm de surpresa: terremotos, inundações, tsunamis, epidemias, pandemias. E, talvez por isso, tenham uma faceta assustadora que é preferível esquecer e deixá-las ao exercício da ficção científica e de distopias em cenários futuros, não os que fazem parte da história. Não à toa agora se relembra os 75 anos da bomba de Hiroshima e Nagasaki e nem se fala mais em desastres naturais recentes que vitimaram número próximo ou, se não tão próximo, ainda imenso de indivíduos. A pandemia da AIDS poderia ser exemplo de invasão da natureza que se fixou no imaginário coletivo, porém, a característica de ser transmitida por indivíduos, majoritariamente através da sexualidade, essa “arma” pulsional humana, a coloca no mesmo nível das ameaças vindas de semelhantes.
Não convém esquecer o que acontece agora. Os cientistas se empenham em procurar as causas e a desenvolver estratégias de prevenção contra doenças agudas e de disseminação rápida, entre as quais a gripe espanhola foi um modelo para a Covid-19. Aprender com a experiência, a histórica e a emocional. Já a ação política não transcorre no mesmo ritmo, fora o narcisismo onipotente, muitas vezes perverso, que nega e procura convencer que tem controle mágico para evitar que tragédias se repitam, apesar de continuarem a se repetir. A mesma atitude mental ocorre nos indivíduos que desdenham das recomendações sanitárias.
E no entanto, é preciso repetir o que tem se dito aqui e em todos os meios de comunicação – recordar, repetir e tentar elaborar. Sabemos que muitos dos desastres naturais são provocados ou acentuados pela interferência humana, tais como o aquecimento global, o desenvolvimento predatório como facilitador da invasão virótica, o descaso diante do sofrimento e da dor alheia. A psicanálise deve ser colocada a serviço da elaboração possível do trauma coletivo e do luto maciço que se vivencia neste momento. Sabemos como é importante esse processo elaborativo para a saúde mental individual e comunitária. Será uma das nossas contribuições para que as 100 mil mortes, a grande parte destas que certamente seria evitável, não se repitam jamais. Freud, na sua sempre citada carta a Einstein sobre a guerra, menciona a possibilidade de se conter os aspectos mais destrutivos presentes no ser humano. Paradoxalmente, também mostra ceticismo quanto a isso. A nós resta, apesar de tudo, continuar o fazer psicanalítico e manter o lado esperançoso de Freud no texto.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Imagem: Cena do filme “O sétimo selo” (Ingmar Bergman): a morte acompanha e ronda a troupe de saltimbancos durante a peste.
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