Saudades do divã

Observatório Psicanalítico – 153/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Saudades do divã

Em homenagem a José Hamilton Gonçalves de Farias.

Denise Salomão Goldfajn SBPSP/SBPRJ

Historiadores da psicanálise descreveram o episódio com romantismo: Madame Benvenisti agradecida pelo tratamento que tivera com Dr. Freud, sensibilizou-se com as reclamações de seu médico sobre o cansaço de ficar frente a frente com pacientes por muitas horas durante o dia e o presenteou com um divã. Assim, o paciente que ali se deitasse, poderia associar livremente tendo o médico próximo a sua cabeceira, protegido do olhar e escrutínio do paciente, livre para escutar o paciente e também a si próprio em atenção flutuante.

Na versão de outros pesquisadores, no entanto, Madame Benvenisti é descrita como um tipo de influencer da época, que bem relacionada, ajudou a divulgar a nova terapia com Dr. Freud em seu círculo social abastado (Appignanessi & Forrester, 1992). Para esses autores, a paciente trouxe o divã para a cena analítica, sem devoção, pois Freud, deixando de lado a hipnose e ensaiando a então nova técnica da associação livre, instruía os pacientes para que relaxassem e falassem sobre o que lhes viesse à mente. Para isso servia-se, por vezes, de uma maca médica, fria e desvitalizada, onde os pacientes se deitavam. Madame, desconfortável com a situação, teria trazido seu próprio divã, e dito a Freud que para ter sua cabeça examinada por ele, ela teria que estar confortável para falar de suas intimidades. Se por um lado sabemos pouco sobre a história clínica ou quanto tempo durou esse tratamento, sabemos o suficiente sobre o divã que foi muito bem-vindo, aprimorado e preservado através dos tempos. Na versão menos oficial sobre o distinto presente, destaca-se o caráter colaborativo, espontâneo e criativo do par analítico.

Hoje sabemos que o mesmo divã doado a Freud, atravessou fronteiras e sobreviveu a guerras, ganhando espaço definitivo na cultura popular, como símbolo maior da peculiar relação do psicanalista com seus pacientes e é hoje relíquia exposta no Museu Freud, em Londres.

Mas o que simboliza o divã psicanalítico? Representaria uma ortodoxia ultrapassada ou uma heroica insistência da transmissão de uma técnica revolucionária? Discussão que parece anacrônica, frente à guinada provocada pela disseminação do COVID-19, que confinou, de um dia para o outro, todos os psicanalistas e seus pacientes às conexões on-line. Nem Camus, nem Saramago foram tão longe em suas ficções. A nova pandemia enterra de vez a imagem icônica do divã na sala do analista, materialização da presença vestigial de um par, que por fim, se encontra restrito à memória de tantas estórias pessoais e profissionais.

Pacientes agora nos presenteiam com links, nos convidam a experimentar e garantem que ficam mais confortáveis com o aplicativo da vez, provocando ao máximo o que Ferenczi  descreveu como a “elasticidade da técnica”, termo, aliás,  proposto por uma de suas pacientes, Elizabeth Severn. Em 1928, Ferenczi escreveu: “É necessário como uma tira elástica, ceder às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões…”

Em meio à pandêmica crise em que nos encontramos, exercitamos, portanto, seja na relação psicanalítica, como em qualquer outra relação humana, a elasticidade como forma de sobrevivência. Face a adversidades, somos capazes de colaborar, de criar e nos adaptar. Mas somos também ambíguos, frente à destrutividade que vivemos, sabemos ser solidários, ao mesmo tempo em que protegemos primeiro o que nos é mais caro, nossas famílias, nosso sustento, nosso narcisismo. E quem fica de fora?

Aqueles que sem condições de seguir as recomendações, revelam que isolar-se socialmente é agrupar-se em novas elites, onde há remédio para poucos. Mais ameaçado está quem não sobrevive unicamente em relações digitais. Em tempos de pandemia, os excluídos  estão condenados ao convívio físico e próximo. Muitos não possuem o privilégio de proteger os mais velhos e mais queridos com a distância física. Outros arriscam-se por juramento, cuidando de doentes. Há os que sofrem por se acompanharem mal de sua própria presença. Pobres são aqueles que existem única e exclusivamente através de seus corpos onde habita o perigo. Nessas condições, o chamado para o isolamento social, mascara a nova ordem do contrato social: privilegiados são aqueles que podem prescindir da intimidade dos corpos.

O isolamento social ao qual nos confinamos, escancara o que a revolução digital já vinha cegando, por claridade em demasia, tudo aquilo que conhecíamos antes como relações de trabalho, relações sociais, relações familiares está afetado catastroficamente. O que conhecíamos antes como desenvolvimento sexual, agora se ordena em uma sensorialidade alternativa, aquela nas pontas dos dedos, na retransmissão da voz, nos confins dos ouvidos, em palavras e imagens que se congelam na tela. O corpo cru é estranho, tal qual são estranhos os cadáveres de vítimas cada vez mais anônimas. Em tempos pandêmicos, corpos são enterrados sem serem velados ou revelados. Estamos diante de um luto estranho, de corpos ausentes. Onde faltam abraços, beijos e lágrimas, prevalece a tristeza. Pandemia, luto e tristeza, como diz o poeta, têm início mas não tem fim.

Sinto saudades do tempo longínquo do divã no consultório de psicanálise.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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Tags: História da psicanálise | Isolamento social | luto | pandemia | Revolução digital
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