Observatório Psicanalítico – 75/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Rotas da Escravidão – Um Estranho Retorno
(Testemunho de um Afro-brasileiro)
Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA)
No período de 12 a 18 de novembro de 2018, estive em Cabo Verde no IV Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa: retorno a terra mãe – o continente negro se apresentou aos meus sentidos, com toda a sua amplitude – o conhecido dando passagem para o desconhecido.
O traumático, dos meus ancestrais, até então adormecido nas profundezas do inconsciente não recalcado, se materializou. Minha pele negra, mestiça na essência, captou sensibilidades que afloraram das dores vividas, mas não sentidas, que defloraram o não saber da percepção consciência. Experiência estética de ser maioria, quando sempre fui minoria. Nesse cenário, de absoluto estranhamento, sou tocado por intensidades que transitam pelo corpo e pela psique – dores, agora, vividas e sentidas – fendas que fazem uma abertura no masoquismo narcotizante, que governava soberano, paralisando as ressonâncias de minha herança arcaica. Contexto propício para o trânsito do traumático da verdade material, o inenarrável, para a verdade histórica, com suas múltiplas possibilidades de narrabilidade.
Diante desta vivência ominosa – dor do encontro com o assassinato da alma dos filhos da mãe África, com seus desdobramentos tanáticos na identidade do negro brasileiro – percebi, o masoquismo guardião da vida, operando seu efeito transformador. Testemunho que revela a escravidão que me constitui. Esse processo do enfretamento com o estrangeiro das minhas origens, provoca um efeito libertador e a expectativa de romper com os imperativos da servidão involuntária e voluntária, com seus ritos de auto sacrifício. Memória resgatada, temporalidade instaurada: fator imprescindível para se estabelecer a ligação entre o passado, o presente e o futuro. Aquisições que geram condições para reescrever a história sob outra perspectiva. O estigma narcísico da lógica escravocrata de ontem e de hoje sofrem uma solução de continuidade.
A psicanálise de língua portuguesa, de maneira inédita, ousa romper com o silêncio mortífero, estabelecido desde sempre, sobre a escravidão do e no negro, o racismo, bem como, toda forma de preconceitos: descobrir continentes.
Novas sensações e interrogações atravessadas por várias inquietações, inventam rotas, criando oportunidades de fazer uma nova leitura sobre os determinismos da escravidão: negro tua pele, erótica por natureza, é tua sina – ser depositário do horror a castração que habita a besta selvagem (Freud, 1930), chamado humano.
Meus ideais construídos entre o mundo dos brancos e dos negros entra em ebulição. Sentimentos de não pertinências são aguçados: ausência da língua materna primordial… Entretanto, emerge um sentido e um significado singular, na expressão afro-brasileiro: uma origem, um destino e uma historia para ser contada e recontada.
Durante esse intervalo de tempo conectei-me com intensidades, que seguem pulsando em minha alma, desacomodando minha herança arcaica – traços de memória da experiência de gerações anteriores (Freud, 1939). Forças de uma vivacidade assustadora, que convoca a escutar meus estranhamentos, com seus efeitos paradoxais, acompanhado da seguinte indagação: o que a metapsicologia, de um judeu sem deus, tem a nos dizer?
Seguindo por esses sinistros caminhos relembro Freud, quando expõe, de forma enfática, que estamos apenas no começo de nossas descobertas, sobre os enigmas da alma, construídos na relação dialética da pulsão de destruição versus a pulsão sexual: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no inicio. Sou apenas um iniciador. […] Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobri continentes (1926).
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