Observatório Psicanalítico – 94/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Quando o carnaval chegar…
Maria Teresa Lopes (SBPRJ)
Penso em Carnaval e sou imediatamente remetida a música “Noite dos mascarados” (1966), de Chico Buarque. Essa música me remete a censura vivida pelos músicos na época da ditadura instaurada a partir de 1964. Chico, tendo a música “Tamandaré” proibida, correu para fazer outra, uma vez que não levava desaforo para casa. Para substituí-la no musical “Meu Refrão” compôs “Noite dos Mascarados”. Não aleatoriamente deu este nome, pois neste momento as coisas precisavam ser escondidas, tal como as faces dos homens, aguçando as mais variadas formas de fantasias. Essa música ficou para mim como sinal de resistência, bem como de um encontro amoroso que não está sendo possível ser vivido.
…”Mas é carnaval
Não me diga mais quem é você
Amanhã, tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar
Deixa o barco correr
Deixe o dia raiar
Que hoje eu sou
Da maneira que você me quer
O que você pedir
Eu lhe dou
Seja você quem for
Seja o que Deus quiser
Seja você quem for
Seja o que Deus quiser.”
E, assim, é hora de colocar o bloco na rua. As fantasias já estão prontas e são as mais variadas: de “demônios a fadas”, passando por todas as ordens sexuais existentes. Lembrando aqui que o mundo imaginário “são estranhos entes engendrados ao longo do tempo e do espaço pela fantasia dos homens”, tal como nos fala Jorge Luis Borges.
E agora chega a maior festa popular que junta asfalto e favelas, ricos e pobres, pretos e brancos, jovens e velhos, homens – trans., homo e heteros – e por aí vão todos os tipos de fantasias.
Nos blocos e nos desfiles de escolas de samba, as músicas viram protestos, as santas viram putas, os homens sérios se travestem. Tem malabares e equilibristas, os ritmos dos tambores soam alto e vibram nos corpos frágeis que ali se encontram para liberar toda energia reprimida de um ano exaustivo.
Nesta festa tudo é permitido. É hora de se libertar, deixar-se tomar pelas “fantasias”, fantasias que não estão apenas nas suas representações visuais, mas nas realizações veladas. Sandra Lorenzon Schaffa (SBPSP), ao descrever o conceito de fantasia, assinala que “a fantasia possui uma organização fundamental que é a busca da satisfação da pulsão através do seu objeto inconsciente. Pela sua ligação com o desejo – este tem sua origem numa experiência de satisfação, mas sua atualização tem um interdito – a fantasia é o lugar de operações defensivas: operações de decomposição, deformação e combinação que estão presentes no trabalho do sonho. Freud viu no sonho e no delírio prolongamentos da fantasia. Concebeu também uma dimensão da fantasia irredutível ao vivido do indivíduo: as fantasias originárias. Reconheceu nelas a prevalência de estruturas trans-individuais típicas: cena originária, sedução, castração.” (Febrapsi)
Assistimos homens se vestindo de mulheres, mas depois do carnaval matam, de forma cruel, homossexuais (objeto de desejo?); sentem-se provocados por suas companheiras, espancando-as e muitas vezes chegando a mata-las (quais desejos estariam aqui reprimidos?). Mulheres se vestem de índias, anjas, enfermeiras, arrumadeiras, princesas, na tentativa de vivê-las de forma lúdica, que ali estão sendo representadas em ato, e quando o carnaval acaba tripudiam sobre elas.
Enquanto a criança no seu dia-a-dia libera suas brincadeiras, o adulto reprime suas fantasias. E nada melhor do que o carnaval para liberá-las. Espera-se o carnaval chegar para viver os mais profundos e secretos desejos. O carnaval nos permite isso e muito mais, sem a necessidade de nos preocupar com que o outro vai pensar, ver ou dizer. A fantasia atrai o olhar do outro, chama atenção. Há tanto prazer e felicidade em desfrutar desse momento que desejo e realidade se misturam.
Estas fantasias vêm recheadas de humor. O humor carnavalesco é usado de forma intencional pelas escolas de samba e blocos para chamar à atenção de algo que não está sendo escutado ou visto da forma como a população gostaria que fosse de fato visto.
O humor aparece de forma denunciadora à qual se deve seu caráter “elevado e enobrecedor”, sua “dignidade”; afinal, “o humor não é resignado, mas rebelde” (Freud, 1927).
Termino com Chico: “Quem é você?…”
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