Psicanálise e Cultura: Clínica do Mundo

Observatório Psicanalítico – 104/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo

Psicanálise e Cultura: Clínica do Mundo

Leda Herrmann (SBPSP)

O boom da Psicanálise no tratamento das neuroses deu-se a partir da segunda metade do século passado e à época passou a ser a opção preferida à psiquiatria. Por um lado, ampliou-se em muito a prática de consultório dos próprios psiquiatras, por outro, fomos deixando de lado o alcance que Freud deu à Psicanálise com suas análises da cultura, da literatura, dos mitos. 

Desde sua criação, Freud nos brindou com textos como “Psicopatologia da vida quotidiana” (1901), “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno” (1908), Gradiva (1907), “Totem e tabu” (1930, Mal-estar na cultura” (1930), “Moisés e o monoteísmo” (1939). Era assim que pensava o mundo em que vivia e, podemos dizer, nos propunha um pensamento clínico do mundo. O boom da clínica de meados do século passado provocou um encolhimento da Psicanálise e levou-a a habitar as paredes do consultório, seu divã e o setting.

O Observatório Psicanalítico, com sua proposta de abrigar “ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo”, tem nos facilitado considerar os sentidos que vem tomando o mundo em que vivemos.

Propicia-nos um exercício de clínica extensa para quem escreve e para quem lê. Clínica extensa nos termos propostos pelo pensamento de Fabio Herrmann, na esteira freudiana de clínica do mundo.

Consideremos a internet com seu bombardeio ou avalanche de informações a nos atingir diretamente e sem nenhuma intermediação. A ele respondemos direta e imediatamente, quase que como numa conversa conosco mesmo. A ausência de um interlocutor real – alguém com quem conversamos –, ou interlocutor preposto pela folha de jornal que lemos, ou no noticiário que vemos na televisão, nos impede essa pausa para reflexão que qualquer intermediação impõe. 

Não é que estejamos “falando sozinhos”, mas respondendo também de imediato, quase que em um impulso. Creio ser uma reação habitual parar o que estamos fazendo e pegar o celular quando escutamos o toque que anuncia o recebimento de uma mensagem de WhatsApp. Que forte apelo narcísico!

O argumento de Freud do imperativo cultural de renúncia instintiva em O Mal-Estar na Cultura, expressa uma típica ideia vitoriana, mais característica da atmosfera moral e da patologia de sua época. No entanto, permite a Freud apontar, para a ciência que estava criando, essa pertinência também na cultura e não só nos processos psíquicos que investigava a fundo a partir de sua clínica.

O que quero pontuar e resgatar é a ideia freudiana de que a cultura, ou seja, as produções culturais são também objeto de nossa ainda jovem ciência, a Psicanálise, e de sua prática, seja no consultório ou fora dele. E é desse ponto de vista que que estou considerando a questão da clínica extensa.

Quero terminar com uma citação de Fabio Herrmann, retirada de seu último livro, publicado postumamente:

“A clínica extensa, tal como Freud a criou e a realidade multiplicou, não é hoje um mérito, mas um fato. Mérito é preparar-se para ela e aceitá-la graciosamente. Hoje, a metamorfose já começou. Estendida a clínica, já não temos os pacientes habituais. Outras patologias impõem-se, outros suportes da psique, não necessariamente individuais, novas modalidades de prática no próprio consultório, algumas muito antigas. Voltar à sociedade, voltar à cultura, sobretudo, voltar à literatura, fonte de nossa ciência – operação que exige a ruptura do campo epistemológico daquilo que se entende por ciência. Apegados a este consultório – que também pratico e amo –, estávamos despreparados para sua extensão. Exatamente aqui incide a exigência da alta teoria, pois é preciso notar que a clínica extensa não vem da falta de pacientes, mas da quebra do já apontado círculo vicioso doutrina reificada, clínica padrão, pelo acúmulo de lentas e pequenas alterações da realidade social, da psicopatologia, do próprio movimento psicanalítico, daquilo a que se poderia chamar ambiente epistemológico etc.” (Herrmann, F: 2015. Fundamentos da Psicanálise: Quatro cursos e um preâmbulo. Ed. Blucher, pp 211-2).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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