Observatório Psicanalítico – 182/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.
Pandemia, sonhos e morte
Ana Carolina Alcici (SBPMG)
Desde o início da pandemia do COVID-19, e mais ainda com o agravamento progressivo da situação, ouvimos que esta será “a guerra da nossa geração”, que “estamos em guerra contra um inimigo invisível” ou que “precisamos adotar medidas drásticas porque estamos em guerra”. Há, portanto, ao menos no imaginário social, uma associação da situação em que vivemos com a guerra. Dentre os diversos elementos que as duas situações apresentam em comum há a triste contagem de mortos, que chega aos milhares todos os dias, e a preocupação com o bem-estar dos nossos entes queridos, que estão tão perto, mas ainda assim longe.
Freud, em seu texto de 1915, “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, nos faz pensar os impactos daquele período, também inédito, para os indivíduos e para a humanidade, dedicando um dos capítulo à nossa atitude para com a morte. Freud acredita que nos é impossível pensar a própria morte, a ela só podemos pensar como expectadores. Em nosso inconsciente todas as contradições coincidem, portanto, ele desconhece tudo o que é negativo, e à morte só podemos dar um conteúdo negativo. Nas palavras dele “não existe nada de instintual em nós que reaja a uma crença na morte”, nosso inconsciente está certo de sua própria imortalidade.
Ele segue dizendo que, no entanto, em tempos de guerra não podemos mais manter nossa atitude perante à morte. A morte em grande número não pode mais ser considerada algo fortuito, o acúmulo de mortes põe fim à impressão de acaso. Não podemos adotar a mesma atitude, mas ainda não encontramos uma nova, o que nos desnorteia e paralisa.
Há, portanto, um intenso trabalho psíquico a ser feito para suportar a realidade do confinamento e a incerteza em relação ao futuro, mas também para encontrar uma nova forma de lidar com a realidade da morte. Pensando nos sonhos como um necessário e importante trabalho psíquico, privilegiado pela redução da censura durante o sono, quais seriam os reflexos desse aumento de demanda psíquica no nosso ato de sonhar?
Um grupo de pesquisadores brasileiros, num trabalho conjunto da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estão desenvolvendo uma pesquisa que trata justamente desse assunto, a partir de relatos de sonhos enviados por pessoas de todo o país. Gilson Iannini, pesquisador da UFMG e um dos responsáveis pelo estudo, aponta alguns resultados preliminares.
Segundo ele, há um aumento vertiginoso do interesse pelos sonhos, as pessoas relatam sonhos mais vívidos e têm a sensação de acordarem mais cansadas. Os relatos apontaram também que anotar os sonhos, e consequentemente pensar sobre eles, ajuda a fazer novas conexões e associações e isso gera uma sensação de apaziguamento.
Ainda segundo a pesquisa, os temas da quarentena e do isolamento aparecem de forma mais literal e os relacionados à pandemia e à morte mais metaforizados. Segundo Iannini, “o psiquismo estranha a novidade: quer assimilar conteúdos e experiências novas a formas simbólicas menos ameaçadoras. Mas neste momento atual, essas formas parecem estar faltando. De repente, nossos esquemas narrativos, nossos pacotes de afetos, nossas formas simbólicas parecem se dissolver.”
Podemos pensar, ainda que de forma conjectural e preliminar, que esse interesse maior pelos sonhos, sua maior vivacidade, sua forma mais metaforizada de pensar a pandemia e a morte em oposição a uma forma mais literal de pensar de pensar outros temas relacionados ao momento em que vivemos, está em parte ligado à dificuldade que o nosso psiquismo encontra para simbolizar e criar uma nova atitude perante a morte? No mesmo texto Freud aponta que é inevitável que busquemos na ficção a compensação do que se perdeu em vida. A ficção permite nossa reconciliação com a morte, encontramos a pluralidade de vida que precisamos, podemos morrer identificados com o herói e ao final já estarmos prontos para morrer numa próxima história, incólumes.
E não seriam os sonhos nossa própria ficção? Todas as noites temos a oportunidade de nos reconciliar com a morte, o que talvez seja mais necessário do que nunca. Nosso inconsciente desconhece tudo sobre a morte, mas a realidade que se impõe nos impede de negá-la, então há um imenso trabalho a ser feito, mas que pode, a partir desse renovado interesse pelos sonhos, nos ajudar a criar novos sentidos e associações, coletivas e singulares, para suportar e superar uma situação antes totalmente desconhecida por nós.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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