Observatório Psicanalítico OP Editorial setembro-2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 53

Setembro/2024

Setembro foi esquisito, o país não se encheu de flores, ao contrário, os pulmões encheram-se da fumaça dos incêndios criminosos, alastrados por todas as regiões e assim foi negada a cota de beleza e ilusão que classicamente é associada ao mês de transição entre o inverno e a primavera. 

Mas psicanalista é insistente e teima em ter esperança. Esperança que tantas vezes se manifesta no trabalho de continuar questionando, provocando, tudo o que está posto: nas relações, na cultura, na biologia, nas definições e sentidos das palavras, até no fim do mundo. De forma que o ensaio que abriu o mês, é de uma mulher, Rafaela Degani (SBPdePA), transformando a afirmação de um homem, Freud, em pergunta: “Anatomia é destino?” (OP 522/2024).

O ensaio de Rafaela trata do livro Eva, da norte-americana Cat Bahannon, que faz um mapeamento, baseado em pesquisas, das inúmeras “Evas”, elos, espécies que em mutação através de 200 milhões de anos, finalmente deram origem à primeira fêmea mamífera, possibilitando evolutivamente a existência da mulher. Rafaela não se empreende em uma resenha do livro, mas traz mais e mais perguntas: … “por que mesmo estamos destruindo tudo? Por que mesmo a guerra? A devastação do meio ambiente, a matança dos nossos semelhantes? Quão estúpidos somos nós, os sapiens, se autodestruindo depois de tanto esforço evolutivo? E quando nos tornamos assim?” 

Se anatomia é destino, não sabemos ao certo, mas que vida e morte são destinos, ficou inegável no mês de setembro. Como que para um respiro, um sopro de vida e preparando o terreno para o que estava por vir, Vanessa Corrêa (SBPSP) falou “Sobre amor e nomes” (OP 523/2024) onde retoma uma vivência infantil em que sua primeira professora consegue nomeá-la e assim introduzi-la no mundo da cultura representado pela escola. A presença de um interlocutor, esse terceiro, que rompe com o inominável e que, ao nomear, permite a elaboração de lutos e entrada em uma nova possibilidade de vida, coincide com o ofício do psicanalista.

Nesse ponto a narrativa foi cortada pela perplexidade da perda “precoce e muito dolorosa” da colega e amiga de muitos Joyce Goldstein (SPPA). Descrita como “linda, alegre, uma pessoa muito querida”, recebeu homenagens de psicanalistas de todo o país e a gratidão das equipes com as quais contribuiu tão vivamente, especialmente no OP, espaço em que participou como curadora no período de 2018 a 2019. 

E foi em menção à partida de Joyce, e dos analistas peruanos Eduardo Gastelumendi e Jorge Kantor, que Mariano Horenstein (APC- Associação Psicanalítica de Córdoba) publicou “Para onde vão os analistas quando morrem?” (OP 524/2024), considerando que por ser o exercício da psicanálise tão pouco compreendido e dificilmente explicável, as instituições psicanalíticas favorecem a criação de fortes laços e identificações entre os membros. Por isso, a cada partida a “marca de sua ausência se torna gigante, pois não fica apenas nos amigos, nas famílias ou em seus analisantes, mas em todos nós. São analistas que não só fizeram seu trabalho na intimidade de seus pequenos mundos, mas também trabalharam em nossas, sempre um tanto difíceis, instituições.” 

Também impactada pela perda, Rossana Nicoliello Pinho (SBPMG) trouxe no ensaio “Sarah e Rachel” (OP 525/2024) a referência a essas personagens bíblicas milenares das quais ela e a amiga se apropriaram poeticamente: Joyce como Sarah e Rossana como Rachel, para exaltar a potência da amizade feminina e dar notícias da intimidade e beleza da relação de sororidade entre as duas; constatando com tristeza: “E Sarah se foi. E no hoje, nessa terra de chão batido pela pisada implacável da realidade, ficou Rachel, buscando a amiga nos quatro cantos do mundo…” 

E diante do luto e do ar irrespirável, Marielle Kellermann Barbosa (SBPSP) trouxe “Ideias para não adiantar o fim do mundo” (OP 526/2024) em que narra uma sessão de análise na qual a paciente e analista constatam a impossibilidade de continuar negando o medo e a impotência sentidos diante dos desastres climáticos que assolam a contemporaneidade. Usam imagens do filme Melancolia, de Lars Von Trier (2011) para criar estratégias, através das metáforas, gerando “cabanas” psicológicas de conforto como opção ao desespero.

Em seguida, fomos surpreendidos por mais uma perda com a notícia da morte de Roosevelt Cassorla, analista extremamente ativo, respeitado e admirado por sua produção científica e laços afetivos. Em uma tentativa de elaboração, Isabel Silveira (SBPSP) escreveu “A-MA-LA. Uma homenagem à Roosevelt”, OP 527/2024, em que ela, carinhosamente, conta de sua revolta pela perda e se imagina em um diálogo no qual ele mesmo a consola: “A cerimônia judaica de seu sepultamento foi belíssima, mas não estava nos planos. Disse-lhe uns palavrões. Ele diria: é a vida, Isabel, as pessoas adoecem, morrem, faz parte.  Eu sei Roo, mas dói para cara…”

Que outra saída há, senão reconhecer a forma da vida em tempos de morte? Para isso nos valemos das palavras e da possibilidade de sonhar, como a poeta Adélia Prado, que sempre sonha “que uma coisa gera/ nunca nada está morto/ o que não parece vivo, aduba/ o que parece estático, espera.” E assim, por aqui também a vida se refaz em ciclos, permitindo que os ensinamentos e as heranças deixadas pelos analistas e pensadores que vieram antes adubem as sementes em quem fica. 

E testemunhamos a germinação de frutos doces, como estes ensaios escritos com tanta delicadeza e o podcast Mirante, que no mês de setembro debateu justamente o “envelhecer nas cidades”, momento em que três mulheres: a jornalista e escritora Rosiska Darcy de Oliveira e as psicanalistas Cibele Brandão (SBPSP) e Beth Mori (SBPsb) falaram de vida e morte. Embora não tenham citado explicitamente Winnicott, parecem compartilhar do mesmo desejo dele: “eu quero estar vivo na hora da minha morte.”

Então encerrou-se o mês com mais uma homenagem à Roosevelt Cassorla em forma do #tbt no Instagram, com a republicação de “Barbárie, terrorismo e paranoia- excertos” (01/2017) que foi o ensaio inaugural do OP. Nele Cassorla nos adverte em relação às projeções, ensinando que na luta contra o fanatismo devemos ser capazes de nomear o mal e a morte dentro de nós mesmos: “O paranoico projeta a Morte (que o aterroriza) no Inimigo. O terror será substituído pela conquista do poder infinito. Como o inimigo é bárbaro, há que ser mais bárbaro que ele. Por isso tudo se justifica.”

Por falar em fanatismo, fica o convite para a mesa do OP no Congresso da Fepal no Rio, dia 17/10, das 11:30h às 13:00h, na sala Gávea B, com o tema: “OP: os caminhos da psicanálise pelas veias abertas da América Latina em tempos de fanatismo e intolerância” e participação de Mariano Horenstein (APC, AR), Maria Elizabeth Mori (SPBsb, BR), Carolina Garcia (APU, UY) e Moises Lemlij (SPP, PE). Ocasião em que Beth Mori apresentará um texto escrito por todas as curadoras do OP.

E, por fim, nesse longo mês em que não se pôde escapar da presença da morte entre nós, queremos deixar marcada a alegria que Joyce a Cassorla celebraram sempre em suas trajetórias, terminando com a voz bem humorada de Rita Lee convocando para a vida: “Mas enquanto estou viva e cheia de graça/ Talvez ainda faça um monte de gente feliz”.

Equipe de curadoria do OP

Beth Mori (SPBsb),

Ana Valeska Maia (SPFOR),

Gabriela Seben (SBPDEPA),

Giuliana Chiapin (SBPDEPA),

Gizela Turkiewicz (SBPSP),

Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),

Lina Schlachter (SPFOR),

Vanessa Corrêa (SBPSP).

 (Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 Imagem: Pôr do Sol em Brasília durante o período da queimada (e incêndio) do Parque Nacional, foto de Beth Mori

 Categoria: Editorial

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, aquecimento climático, morte, vida

Os ensaios do OP são postados no também no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página da Febrapsi:

https://www.facebook.com/share/p/nx1qoVSPfiDFsxq3/?mibextid=WC7FNe

Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico

Categoria: Editoriais
Tags: aquecimento climático | editorial | Morte | observatorio psicanalitico | Vida
Share This