Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 54 / Outubro/2024
Para nós, psicanalistas filiados à Federação Psicanalítica Latino-americana, o mês de outubro foi especial. Aconteceu, na cidade do Rio de Janeiro, o 35º Congresso da FEPAL sobre o tema “Intolerância, fanatismo e realidade psíquica”. Celebramos o fim da gestão da nossa presidenta Wania Cidade (SBPRJ) que coordenou o evento com maestria em conjunto com a equipe local. A programação científica do Congresso esteve sob a batuta de Marina Massi (SBPSP) que, com sua equipe, estruturou o grande tema em três eixos: 1. Fanatismo, Racismo e Migrações; 2. Diversidade, Diferença Sexual e de Gênero; 3. A Formação Psicanalítica e a Clínica do seu contexto atual.
A escolha de dedicar cada dia do Congresso a um eixo temático específico permitiu que os participantes se mantivessem focados e engajados no tema principal daquele dia. Essa organização metodológica ajudou a criar uma continuidade entre as diferentes atividades, iniciada com as falas dos apresentadores e os debates da plateia, realizados durante as primeiras sessões do dia (plenárias), dando sequência às mesas e conversas que se seguiam.
Nos encontros com colegas, tanto nas salas de atividades quanto nos espaços de convivência e durante os intervalos, as conversas fluíam naturalmente, permitindo que novas interpretações e trocas de sentidos emergissem, ainda que de maneira provisória. O ambiente criado pelos eixos favorecia diálogos inspiradores e, mesmo fora das sessões formais, era possível continuar discutindo e sonhando com as ideias trazidas nas apresentações.
A integração entre o conteúdo das atividades e o formato do evento potencializou o aprendizado coletivo e a construção de novas perspectivas entre os participantes. Como nos propõe a teórica Ariella Aïsha Azoulay, em seu livro “História Potencial” (2024), sobre a necessidade de revermos a história pelo processo de desaprender, recuperando ontologias políticas que rejeitem taxonomias imperiais. Esse é um método que implica o questionamento de nossos hábitos. Em nosso caso, envolve o questionamento acerca da precisão das lentes que nos constituem como psicanalistas na contemporaneidade.
Neste sentido, merece destaque a atividade pré-Congresso preparada pela equipe local: O “Circuito Pequena África”, com o professor de história Flávio Henrique Cardoso – @negrociandohistoria. Durante a caminhada por alguns pontos centrais do Rio de Janeiro pudemos conhecer melhor a nossa história, a partir de como se deu o processo de colonização com a chegada dos africanos escravizados no Brasil. No “Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos (Recém-Chegados)”, localizado na Rua Pedro Ernesto, foi possível constatar como o lugar recebeu de maneira degradante os corpos de negros cativos que morriam na chegada ao país.
Outro evento importante que aconteceu junto ao Congresso foi a visita ao Projeto Bonsai do Cidades Invisíveis na comunidade do Vidigal. O grupo de psicanalistas participou de uma oficina de arte com jovens da comunidade, e teve a oportunidade de conversar com colaboradores do projeto. Uma importante e necessária ponte entre o Leblon, um bairro de elite onde ocorreu o Congresso, e o Vidigal. Experiências como estas possibilitam a abertura da psicanálise para fora, para seu entorno, para a história, o que, acreditamos, a torna ainda mais capaz de olhar não só para si, mas também para a complexa diversidade dos sujeitos.
Às vésperas do Congresso, convidamos Wania para escrever o primeiro ensaio. Em “Estou voltando para casa! Mas antes, nos vemos no Congresso da FEPAL”, OP 531/2024, ela nos fala sobre os “sentimentos indizíveis” que surgem com “a falta e a saudade, sentimentos tão estranhos, que pedem sentido e desaguam em dor”, referindo-se a perda de tantos colegas psicanalistas e, em especial, sua amiga e secretária da Fepal Joyce Goldstein, que durante os dois últimos anos trabalhou arduamente para que o Congresso se realizasse.
Wania reafirma que o Congresso foi organizado com “a força e a beleza desse encontro, desse momento pelo qual aguardamos e para o qual nos preparamos. Há laços muito vigorosos que mantêm e que renovam essa circulação de ideias e de afetos por décadas.” Além disso, ao tratar da gestão de uma instituição psicanalítica, lembra que é possível realizar esse trabalho com prazer ao fazer “escolhas acertadas para dividir tarefa tão difícil […] Digo difícil porque todos sabem o quanto é árduo e trabalhoso, primeiro, conhecer em profundidade a estrutura e o funcionamento de uma antiga e sólida instituição e, segundo, porque estamos lidando com políticas institucionais e diferentes maneiras de pensar, o que abre novos universos com os quais aprendemos e precisamos lidar sem perder o nosso rumo; e, terceiro, com um tanto de atribulações que grande parte de vocês conhece bem”. Reconhecendo que “uma andorinha não faz verão”, ela ressalta a importância de repensarmos a organização dos congressos para incluirmos os “corpos abjetos” que sempre são barrados pelo muro financeiro que impomos.
Ainda sob o calor do encontro, Vanessa Corrêa (SBPSP) escreveu o ensaio “Um corpo com vergonha de sentir vergonha – o masoquismo narcotizante”, OP 532/2024. Com uma escrita poética, ela nos ajuda a pensar sobre a relação entre a “etiqueta psicanalítica” e as nossas análises pessoais. Ela afirma: “Senti ódio de todas as minhas análises, que foram em grande medida responsáveis pela minha sobrevivência, mas me deixaram bastante civilizada, quase sempre muda e mais ou menos alinhada com o bom gosto […] Tolerância e intolerância variam muito, mas aquilo que as elites toleram é traduzido e transformado em ‘etiqueta’, esse conjunto de regras que mostra quem não pertence e silencia quem não comunga certas palavras e gestos. Etiqueta é um instrumento potente de controle social.” O ensaio de Vanessa, a partir de seu lugar na plateia de uma das salas do Congresso, ao ouvir Ignácio Paim, nos provocou.
Com o desejo de prolongar os prazeres desse encontro e buscar saber mais sobre as conversas que se sucederam nas mesas do evento, enviamos uma carta-convite a todos os colegas (que participam do grupo OP) que desejam publicar um ensaio sobre o trabalho apresentado. Nosso convite estendeu-se àqueles que, presentes ou não, quisessem escrever sobre esse acontecimento institucional, um momento de integração entre a psicanálise e a época em que vivemos.
Esse acontecimento-convite da equipe de Curadoria esquentou o grupo de e-mails do OP que, desde o começo, têm sido um fórum aberto e igualitário. Um território comum, como uma Ágora, no qual o debate de ideias desencadeadas pelo impacto dos acontecimentos frutifica e flui em uma perspectiva psicanalítica associada a contribuições vindas da pesquisa de outros campos do saber. Antes do OP, uma rede de compartilhamento para a troca de ideias entre os psicanalistas, em larga escala, só era possível em momentos pontuais, como quando nos encontrávamos em simpósios, jornadas ou congressos. Por isso, fez sentido para nós, curadoras, continuarmos a conversa iniciada no Congresso da Fepal. Afinal o OP abre rotas para um pensamento psicanalítico ativo e vibrátil, que afeta e é afetado pela realidade, modificando-a, de algum modo.
Passamos a receber, a partir daí, os ensaios.
Cecilia Orsini (SBPSP) e Beth Mori (SPBsb), a partir dos textos apresentados por elas na mesa sobre “Formação e alienação”, escreveram o ensaio “Aprendiz de feiticeiro e o bruxo do Cosme Velho”, OP 533/2024. O texto parte de encontro imaginário entre o nosso grande Machado de Assis, em “O espelho”, e o psicanalista Otto Kernberg, em seu irônico texto “Trinta métodos para destruir a criatividade de candidatos a psicanalistas” (1996). Para as autoras “A alienação na psicanálise pode ser tanto uma armadilha quanto uma escolha. O ensaio mobilizou muitos comentários no grupo de e-mails do Observatório Psicanalítico, quando pudemos perceber a necessidade de os colegas conversarem sobre a formação psicanalítica que realizamos e os instituídos fossilizados que nos impedem de responder às demandas de nossa época. Destacamos o comentário de Miguel Calmon (SBPRJ): “um ensaio literário, de um lado, e, de outro, um forte apelo para que se revisitem questões que insistem em permanecer vivas na formação psicanalítica, apesar de mais de 50 anos de críticas contundentes. Os ‘mais experientes’ parecem não escutá-las e, provavelmente, querem crer que os que os criticam o fazem por inveja ou problemas edípicos mal resolvidos.”
Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP), no ensaio sobre “Formação analítica e os riscos de fanatismo”, OP 535/2024, relata sua trajetória na formação psicanalítica que se aproxima das críticas trazidas por Kernberg sobre os ambientes psicanalíticos que desestimulam a criatividade e o amadurecimento dos analistas em formação. Foi na busca de uma identidade psicanalítica própria que ele “virou a chave”. Comenta dois artigos que publicou sobre o assunto, apontando tanto para “o risco de engessamento em um tipo de formação que produzia analistas adaptados a um padrão determinado pelo modelo de seus respectivos didatas em conjunto com a cultura vigente na instituição”, como a inserção da psicanálise na cultura. Julio passou a intervir mais publicamente com sua escrita a partir de 2019 quando o “governo com feições antidemocráticas e o sentimento de indignação a respeito dos contínuos descalabros” o fizeram compreender “a necessidade da participação das instituições psicanalíticas no debate público.”
Mariano Horenstein (APC), também presente na mesa “sobre os riscos do fanatismo na formação analítica”, no ensaio “Uma questão de perspectiva”, OP 536/2024, inicia seu ensaio nos perguntando o que queremos dizer quando falamos em formação analítica. “Nossas respostas -sempre provisórias- dependerão de uma questão de perspectiva.” Reconhece que, apesar de tantas controvérsias sobre o tema na história do movimento psicanalítico, todos concordam que o tripé – treinamento teórico, supervisões e análise pessoal – é a nossa força. A análise pessoal deve ser vista como o “centro de gravidade”, pois é onde se encontram os maiores riscos de fanatismo. “Devemos descobrir antídotos para evitar o fanatismo institucional, para diminuir o risco de que os Institutos produzam, em vez de analistas com um estilo único, analistas em série, clones de sua didata.” […] “…devemos pensar no risco de as instituições estarem presentes demais nas análises de formação.”
No mês de outubro, a cada dois anos, as eleições gerais acontecem no país para os cargos legislativos e executivos. Vamos às urnas, alternadamente, para escolher o presidente do país e os governadores dos estados em um ano, e os prefeitos e vereadores das cidades brasileiras dois anos depois. Neste mês, a população brasileira foi às urnas para votar para prefeitos e vereadores que conduzirão a política pública dos 5500 municípios do país.
No OP marcamos esse momento com dois ensaios. No dia anterior às eleições, Marilsa Taffarel (SBPSP) escreveu “Soberania da multidão”, OP 529/2024, quando nos provocou com a expressão “Uma cabeça, um voto”. Para ela, trata-se de “uma consigna de um regime democrático no qual um indivíduo soberano, em acordo com outros indivíduos soberanos, elege seu governo”. E, recorreu à Freud, que “nos mostrou, em seus trabalhos sobre a cultura, que a organização social humana é suscetível a vertiginosas regressões.” Deixou questões para o leitor seguir pensando: “A evolução de nosso sistema social estaria nos levando, novamente, à beira da regressão social: a volta ou intensificação de relações sociais compatíveis com o suposto estado de natureza hobbesiano, uma luta de todos contra todos? Estaria sendo solicitado um Leviatã, um líder forte e tirânico? O que podemos contrapor à identificação com o tirano, o tiranete que nos habita?”
Já na proximidade do segundo turno das eleições para prefeitos, Mônica G. T. do Amaral (SBPSP) enviou ao OP o ensaio “O universo paralelo da autonomeada direita no Brasil – uma leitura machadiana em diálogo com a teoria crítica e a psicanálise”, OP 534/2024. Nesse texto, ela nos propõe uma “breve reflexão sobre o universo conservador da ultradireita em ascensão em nosso país e os fundamentos autoritários da (de)formação cultural brasileira promovida pela mídia e redes sociais que estão em jogo nessas eleições municipais.” O texto busca dialogar com Machado de Assis, mais especificamente na figura de Candinho, personagem central do conto “Pai contra Mãe” (1906), “que, na falta de outra qualificação, exercia a profissão de ‘caçador de escravos'”. Para a autora, “a nova onda conservadora invadiu o debate político em São Paulo, substituído em diversas partes do Brasil, por ataques à esquerda e à diversidade, assumindo de modo disfarçado ou declarado uma posição de direita, sustentada pela pauta dos “costumes”, com bandeiras conservadoras e até mesmo fascistas, tais como a eliminação da vida de todos aqueles que aparentemente dificultam a manutenção da ordem e que são uma ameaça para os anseios de ascensão dos “Candinhos” de hoje. Nem que, para isso, seja preciso “acabar” com os pobres, moradores de rua, negros, indígenas e a comunidade LGBTQI+, entre outros.”
Qual é o recado deixado nas urnas? O que os votos dos brasileiros nos disseram sobre seus desejos? Podemos falar em soberania do voto das democracias diante do que revelou a pesquisa realizada pela FGV e divulgada pela BBC News Brasil? O volume das emendas parlamentares destinadas à municípios por deputados federais, conhecidas como “orçamento secreto” – devido a falta de critérios transparentes para a destinação das verbas públicas – subiu de R$ 3,43 bilhões em 2015 para R$ 35,3 bilhões em 2023. Foram os 513 deputados eleitos em 2022 para o parlamento brasileiro que, com dinheiro público, contribuíram para a eleição da maioria dos prefeitos que governarão os municípios a partir do próximo ano.
Exemplificando com o maior colégio eleitoral do país, a cidade de São Paulo, houve grande abstenção dos votos: passou dos 30%. Quase 3 milhões da população paulistana não votou. Ou seja, 1/3 da população abdicou da soberania dos votos. Os faltantes têm crescido a cada ano. A falta de interesse da população pode demonstrar um descrédito na política? O que explica tamanha descrença de que é possível apostar em uma vida coletiva a partir do encontro de corpos diversos nas cidades?
Josi Souza (SBPRP), no grupo do OP, expressa: “A alusão ao conto de Machado (no ensaio de Mônica Amaral), este que já nos tinha sido presenteado pela Cecília e Beth, traz com sagacidade a complexidade da formação de nosso povo brasileiro – uma elite com arraigados resquícios coloniais, uma classe média que se identifica com essa elite e aspira fazer parte dela e uma massa de desassistidos. Tudo isso hoje agravado pelo projeto ultra-neo-liberal, em que as pessoas são capturadas pelo engodo do empreendedorismo (“empresárias de si mesmas”), com cada vez mais dificuldade de se unirem em lutas coletivas – configura-se um cenário de recrudescimento do autoritarismo, de bandeiras conservadoras e da pauta de “costumes”. Também acho necessário que cada “criança vingue” e que tenhamos projetos educacionais que trabalhem preconceitos, estereótipos e discriminações. Acho que precisamos também resgatar o sentido de vivermos em comunidade.”
No podcast Mirante, seguimos pensando a temporada “O Sexual na Polis”, quando conversamos com o bailarino René Sato e a psicanalista Marina Miranda, no episódio “Corpos na Cidade”, sobre esse corpo como o lugar das incertezas.
Em “Elas”, OP 528/2024, Daniel Delouya (SBPSP) dedica seu ensaio “Às autoras do OP sobre o feminino”, que, segundo ele, “estão em luta”. E a expressão dessa luta no OP tem sido intensa”. O colega refere-se aos “muitos ensaios, belos e indignados, de nossas colegas sobre o feminino que superaram, em número e qualidade, os dos colegas que escreveram sobre a guerra ou o clima. Apesar da adesão e da admiração, o tema permanece sensível, e muitos mantiveram o silêncio em relação às vozes das colegas.” Daniel recorda alguns mitos sobre a origem da mulher e propõe uma reflexão sobre o aspecto vingativo e o conluio inconsciente das mulheres que criam homens machistas.
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) em “Um homem de tirar o chapéu: Antonio Sapienza”, OP 530/2024, rende homenagens ao psicanalista que marcou a trajetória pessoal e profissional de vários colegas. Em sua escrita, nos trouxe “Sapienza para mais perto de nós, mais íntimo de nós”, como nos disse por Sérgio Nick (SBPRJ). Por meio do relato de encontros cotidianos com Sapienza, a psicanalista Helena aprendeu que a psicanálise é nada mais do que o “amor à verdade”.
Concluímos o mês de outubro, nos despedindo de Gizela Turkiewicz, que deixa a equipe de Curadoria do OP para dedicar-se à próxima gestão da SBPSP. Embora as despedidas sejam difíceis, é reconfortante saber que a pessoa fará muita falta! Vai com tudo, amiga querida; vai ser lindo! É uma alegria que tantos espaços possam contar com você! Temos sorte de ter tido você ao nosso lado neste último ano.
Abraços nossos, Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), Lina Schlachter (SPFOR), Vanessa Corrêa (SBPSP).
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Mercedes Batista (1921-2014), ícone da dança afro no Brasil. Escultura de Mario Pitanguy
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Congresso FEPAL, Formação em Psicanálise, Política brasileira
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