Observatório Psicanalítico–OP Editorial outubro/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Sódepois 42

Outubro/2023

A insanidade da guerra não poupa ninguém. Nem mesmo idosos e crianças têm escapado aos seus horrores, sejam eles israelenses ou palestinos. Ainda que geograficamente distantes, acompanhamos a transmissão das imagens do conflito em tempo real, impotentes diante de tamanha brutalidade. Essas cenas, que poderiam ter sido retiradas de um filme de terror, expõem a face mais cruel da realidade. Cenas que nos invadem como mísseis por todas as janelas, televisão, celular, mensagens de Whatsapp, impregnam nossa mente. Ninguém está imune.

Em pleno 2023, o artifício da guerra ainda é considerado como alternativa de resolução dos impasses gerados por disputas entre as nações. Ou seria justamente a escassez de alternativas mais simbólicas que levaria a uma violência tão desmedida? Lembremos que desde o ano passado há uma outra guerra em curso, quando a Rússia invadiu a vizinha Ucrânia, embate que já dizimou milhares desde o seu início, e que já é considerado o maior confronto militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. 

Atordoadas pelo bombardeio de informações e pela falta de sentido, buscamos palavras para compreender o horror. Difícil encontrá-las. Recorremos a Freud, resgatando a atualidade da correspondência trocada com Einstein, em 1932, atendendo à proposta da recém-criada Liga das Nações. Em “Por que a guerra?”, físico e psicanalista tentavam lançar luz ao incompreensível: “Por que o senhor, eu e tantas pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra?”, indaga Freud. E segue: “Por que não a aceitamos como mais uma das calamidades da vida?”. Após explicar ao seu interlocutor a existência de instintos antagônicos no ser humano, Freud conclui que a guerra se opõe ao processo de civilização e por isso não devemos nos conformar com ela, afinal “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.

Sabemos que a história da psicanálise é atravessada pelas duas grandes guerras, que tão dolorosamente marcaram a humanidade na primeira metade do século XX. Durante a Primeira Guerra, Freud escreve suas “Reflexões para os tempos de guerra e de morte”, afirmando sua desilusão frente a este ato maior de transgressão, quando os homens se entregam às suas paixões e perpetram atos de crueldade incompatíveis com a civilidade. Como bem ilustrou Dostoievski, escritor apreciado por Freud, em “Os irmãos Karamazov”: “Em todo homem, é claro, habita um demônio oculto: o demônio da cólera, o demônio do prazer voluptuoso frente aos gritos da vítima torturada, o demônio da luxúria sem peias”.

Em “O Mal-estar na civilização” (1930), Freud reconheceu a agressividade inata do homem como fator de ameaça à vida em sociedade. Mais tarde, com a formulação da segunda teoria pulsional, identificou o antagonismo irremediável entre as demandas pulsionais e as exigências da cultura, percebendo que a combinação entre agressividade e pulsão de morte poderia culminar em uma mistura explosiva: a destrutividade.  

A guerra aparece como a manifestação mais expressiva do que há de mais disruptivo no caldeirão pulsional do humano. É quando assistimos ao mais drástico rompimento do pacto civilizatório. Frente aos seus horrores e a tudo o que permeia a complexa situação política do Oriente Médio, muitos de nossos psicanalistas colocaram-se, assim como Freud, a pensar exaustivamente, tentando atribuir alguma elaboração à dimensão traumática que se impôs: um excesso à capacidade psíquica de representar e assimilar. Muitos deles, de origem judaica, descreveram em seus textos a sua experiência de vida e a de seus familiares, atravessados pela dor e pela marca transgeracional do genocídio que dizimou milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra. Conhecem de perto, portanto, o peso arrebatador do antissemitismo. 

Na primeira semana desde o início dessa guerra, o nosso Observatório recebeu um número bastante expressivo de ensaios. Por ordem de chegada, foram publicados os textos de Daniel Delouya (SBPSP) “Pela ilusão dos inocentes” (OP 429/2023), Bernardo Tanis (SBPSP) “O dia em que o Zoom foi uma janela aberta” (OP 430/2023), Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP) “Até quando prevalecerá a insanidade no Oriente Médio? (OP 431/2023), Marion Minerbo (SBPSP) “Antissemitismo estrutural” (OP 432/2023), Ruggero Levy (SPPA) “Nada justifica o terror!” (OP 433/2023), José Alberto Zusman (SPRJ) “Considerações sobre o terrorismo” (OP 434/2023), Daniela Boianovsky (SPBsb) “Posso bater na sua porta?” (OP 435/2023), Alicia Beatriz Dorado de Lisondo (SBPSP) “Como trazer alguma luz para o massacre no Oriente Médio?” (OP 436/2023), Celso Gutfreind (SBPdePA) “Grandes guerras, pequenas esperanças” (OP 437/2023) e Hemerson Ari Mendes (SPPel) “Três filhos judeus e uma libanesa, e um neto que é um neto” (OP 439/2023).

Ainda que tenhamos recebido diversos textos sobre o conflito no Oriente Médio, percebemos que, apesar de inquietos, muitos colegas estavam em silêncio, temerosos em esboçar opiniões divergentes daquelas publicadas nos textos escritos até então. Sabemos que o não dito tem um potencial mortífero e desagregador, ao contrário da palavra, que pode tecer ligações e ampliar significados e sentidos, promovendo o diálogo. Durante esse tempo chegou a nós da Curadoria o incômodo oriundo da percepção de que os textos publicados apresentavam uma visão unilateral sobre o conflito. Essa percepção nos levou a publicar uma carta em nosso grupo de e-mails, no dia 25 de outubro, intitulada “Carta ao GG – Não matem o mensageiro!”, através da qual convidamos todos os colegas a contribuírem com suas reflexões, reiterando nosso compromisso com o respeito mútuo e com a diversidade de pensamentos. Afinal, não é disso que se trata a psicanálise?

O OP, em seus sete anos de existência, consolidou-se como um espaço democrático e plural, onde é possível acolher as mais diferentes visões, e novos textos chegaram a partir do nosso “chamado”. Entre eles, o ensaio de Carmen Souto de Oliveira (SPBsb) intitulado “Os Mortos da Geopolítica” (OP 440/2023); “O Anátema: Israel – Palestina – Gaza” (OP 441/2023), de Miguel Sayad (SBPRJ), “Somos todos responsáveis” (OP 442/2023), de Fernanda Marinho (SBPRJ), “O dia em descobri o ódio aos judeus” (OP 443/2023), de Michelle Gorin (SBPRJ), e “O Giro da Manivela Amarela” (OP 444/2023), de Cristiane Mota Takata (SBPSP).

Os ensaios trouxeram, ainda que de diferentes pontos de vista, contextualizações políticas e históricas sobre as relações entre Israel e Palestina, fornecendo-nos subsídios para pensar o conflito em sua complexidade, compreendida nos níveis bilateral, regional e global, considerando ainda a temporalidade e os vários capítulos que antecederam a eclosão da atual guerra. Desde então, travou-se um debate interessante em nosso grupo de e-mails, onde ideias e percepções diversas puderam ser conversadas com argumentos consistentes e, o mais importante, de forma respeitosa.

Ainda existem muitas incertezas quanto ao desfecho desse conflito. Enquanto isso, a apreensão é imensa e manter viva a esperança é a tarefa de maior desafio em meio à tempestade que atravessamos. Apesar de estarmos todos extremamente sensibilizados com os horrores das guerras, não podemos deixar de voltar o olhar para o nosso país e suas violências cotidianas, que ocorrem não muito longe de nossos olhos, a exemplo da guerra entre as milícias no Rio de Janeiro, que tem ceifado muitas vidas e implementado o terror e o caos. 

No início do mês de outubro, três médicos ortopedistas foram executados à queima-roupa em um quiosque na Barra da Tijuca. Um quarto médico ficou ferido em estado grave. A principal linha de investigação da polícia apontou para a hipótese de que uma das vítimas teria sido confundida com um miliciano. Um dos médicos assassinados era o irmão da Deputada Sâmia Bomfim, do Psol. No dia seguinte, a Polícia Civil encontrou os corpos dos supostos autores do ataque, mortos por retaliação da própria facção. 

Algumas semanas depois, milicianos ordenaram um novo ataque na Zona Oeste do Rio. Trinta e cinco ônibus foram queimados a mando de criminosos na cidade. O caos foi provocado após a morte de uma das lideranças da maior milícia do Rio de Janeiro. Instalou-se na região uma atmosfera de medo e intimidação. Trabalhadores e estudantes foram afetados em seu trânsito pela cidade e enfrentam agora o medo de um novo confronto.

A marca indelével da violência, seja nas grandes guerras ou nas guerrilhas urbanas, produz subjetividades que são forjadas em um contexto hostil, agressivo. Como romper com um ciclo que, inevitavelmente, acaba por se repetir e se perpetuar através de gerações? 

Entre os acontecimentos do mês de outubro que marcaram o Brasil e o mundo, destacamos também a demissão de mais uma mulher no governo Lula. Depois de Daniela Carneiro (ex-ministra do Turismo) e Ana Moser (ex-ministra dos Esportes), foi a vez de Rita Serrano deixar o cargo de presidente da Caixa Econômica Federal, fato que ocorre em meio a pressões do Centrão. Essas trocas reproduzem o de sempre: homens brancos ocupando o poder. Em um país diverso como o Brasil, é lamentável que a representatividade fique sempre nas mãos dos mesmos, e que a desigualdade entre gêneros ainda seja um problema crônico em nosso país. 

Em contrapartida, tivemos também em outubro uma boa notícia: o escritor indígena e ativista ambiental Aílton Krenak foi escolhido para ocupar a cadeira que pertencera ao falecido escritor José Murilo de Carvalho na Academia Brasileira de Letras (ABL). Krenak é o primeiro indígena a se tornar “imortal”, o que representa uma importante reparação histórica e reafirma o compromisso com a representatividade, na contramão do que ocorre em outros espaços. Krenak já teve suas obras traduzidas em mais de 13 países, levando a riqueza de nossa cultura e a luta pela preservação de nossas florestas e biomas através de sua escrita. Em sua homenagem, publicamos no Instagram, em nossa terça cultural, o texto do psicanalista Sergio Lewkowicz (SPPA) “Raoni, Krenak, Kopenawa: os sonhos e o fim do mundo (OP 129/2019), publicado originalmente em 2019.

Em meio a uma das maiores crises econômicas das últimas décadas, a vizinha Argentina foi às urnas no domingo, 22 de outubro, para escolher o futuro presidente. Sérgio Massa, peronista e atual Ministro da Economia, ficou em primeiro lugar, à frente de Javier Milei, candidato da extrema direita. O resultado surpreendeu, já que na etapa preliminar Milei havia sido o favorito. Sobre esse assunto, recebemos o texto da psicanalista Alicia Killner, da Associação Psicanalítica da Argentina, intitulado “Domingo de eleições na Argentina” (OP 438/2023). A autora descreve um panorama da atual situação sociopolítica de seu país e revela o momento de apreensão: “A Argentina não merece passar pelo que essa incógnita está provocando, mas talvez a classe política mereça engolir o gosto amargo de seu fracasso”. Beth Mori (SPBsb), em comentário sobre o texto da colega, demonstrou o quanto nós, brasileiros, que também vivenciamos por aqui a ascensão da extrema direita, estamos sensibilizados com a situação do país vizinho: “Seguimos apreensivos com a cartada final (…) Espero que Massa aja como uma direita sensata, esclarecida, progressista dentro do enquadramento que a define”. O segundo turno, decisivo, será em breve.

Foi ao ar neste mês o terceiro episódio da quarta temporada do nosso podcast Mirante, cujo tema é “O Sexual na Pólis”. Com a participação da psicanalista Luciane Falcão (SPPA) e do historiador Alexandre Cozer, o episódio “O phallus na história romana e a sexualidade na psicanálise” traz um interessante debate sobre o significado do pênis e seu deslocamento para o falo na história da humanidade e na teoria psicanalítica. Os convidados debateram sobre as relações de poder em uma estrutura cultural falocêntrica. O tema do episódio dialoga de forma instigante com o momento atual, e pode ser acessado no Spotify e em todas as plataformas de podcast.

Apesar do trabalho intenso que tivemos no último mês em nosso Observatório, com a quantidade de informações, textos e comentários recebidos, sentimos, mais do que nunca, a importância do trabalho em grupo. E em meio à turbulência que estamos atravessando, ficamos contentes em anunciar mais uma integrante em nossa equipe de curadoria: Vanessa Corrêa, da SBPSP. Já contando com a bem-vinda presença de Vanessa ao nosso grupo, “pegamos juntas”, lendo, escrevendo, trocando mensagens de apoio, elaborando pensamentos. Entendemos que tempos traumáticos exigem cuidado. Cuidemos uns dos outros para quem sabe transformar a mortificação em experiência vital! 

Outubro nos deixa perplexas em face da violência que se alastra como chama pelo Oriente Médio e também por aqui. Como equipe, sentimos na pele o receio de sermos mal interpretadas neste editorial, uma vez que os afetos estão em ebulição. Entretanto, sensíveis à situação, reiteramos nossa solidariedade às vítimas desse conflito, manifestando-nos a favor da paz, pela entrada em cena de líderes capazes de exercerem o diálogo, pela liberação de todos os reféns e pelo cessar-fogo imediato. Basta de violência.

Finalizamos com as palavras de Cristiane Mota Takata, que nos fala com poesia sobre a arte de transformar: “Transformação que pediria um cultivo delicado dos afetos e dos sentidos, até que pudessem florescer as ideias-ponte, os gestos-laço, as palavras-vida…”

Seguimos.

Um abraço afetuoso a todos,

Equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBsb),  Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SPBsb), Gabriela Seben (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) e Vanessa Corrêa (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Guerra, Violência, Paz

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Categoria: Editoriais
Tags: editorial | guerra | observatorio psicanalitico | Paz | violência
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