Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 67
Novembro/2025
“Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos.” Michèle Petit
Dizem que somos animais poéticos. Se, para a nossa espécie, a arte antecedeu a agricultura e a moeda, talvez seja porque, desde tempos imemoriais, precisamos ampliar o território dos acontecimentos e buscar algo mais: dar sentido ao que se sente, ao que ainda não se sabe.
Aprendemos uns com os outros a transgredir a geografia dos silêncios. Aqui no OP, novembro de 2025 foi um mês fértil, no qual palavras pousaram, fizeram morada e expandiram fronteiras. Nascidas de experiências e encontros, mas também de revoltas, perplexidades diante do inominável e de perdas, as palavras se acasalaram em busca de novas escutas e novos laços.
Também dizem que somos animais políticos. Em nosso Observatório Psicanalítico, as palavras se tornam contraponto à desmemória da era dos excessos. Em novembro, o país assistiu à prisão de um dos maiores defensores da normalização da violência: Jair Bolsonaro começou a cumprir pena pela trama golpista que visava abolir o Estado democrático de direito. Militares de alta patente envolvidos no conluio também estão presos.
Mas é verdade também que podemos ser animais políticos com poesia — esculpindo palavras aladas, palavras com pausas, palavras mais próximas das canções. Abrimos o mês com o ensaio de Ana Carolina Alcici – SPRJ, “Se eu morrer, não chore não, é só a lua” (OP 625/2025). Mineira, Ana Carolina escreve sobre a partida de Lô Borges. Suas canções acompanharam as fases da vida da autora, em girassóis, estrelas no mar, janelas laterais e trens azuis. Para muitos, Lô Borges deixou marcas; todavia, para quem partilha a mineiridade, a dor é íntima, como a despedida de um amigo. “Dói como se fosse a perda de alguém muito familiar — porque de certo modo, era”.
Em seguida, Maria Noel Brena Sertã – SBPRJ apresenta o conto “Um dia qualquer” (OP 626/2025). Acompanhamos o cotidiano de uma mulher da periferia, mãe de dois filhos, cuja vida é impactada por um acontecimento violentíssimo. A narrativa expõe conflitos de classe, violência estatal e ressonâncias coloniais, criando um elo com a chacina ocorrida no final de outubro, no Rio de Janeiro.
Sobre esse mesmo acontecimento, Bernardo Tanis – SBPSP, em “Sobre os atos justiceiros: porque quem entende desorganiza” (OP 627/2025), revisita os 13 tiros que mataram Mineirinho pela lente da crônica de Clarice Lispector. Tiro a tiro, Clarice transforma-se em Mineirinho: “para matá-lo uma bala bastava, o resto era vontade de matar”. Cercados de vítimas e justiceiros, diz Tanis, perdemos o sono — porque “quem entende desorganiza.”
E foi com a energia entusiasta de viajante — talvez como o “Manuel, o audaz”, o jipe amarelo de Lô Borges — que Adriana R. R. Rapeli – SBPRJ, SBPSP viajou ao Rio Grande do Sul. Em “Feitos e ditos: ecos do congresso da Febrapsi” (OP 628/2025), narra com delicadeza os encontros que marcaram os dias em Porto Alegre e Gramado: “Trabalhamos seriamente e nos divertimos também com gosto e gozo. Já sinto falta da alegria reconfortante de viver dias em que morávamos em uma cidade pequena, cruzando com nossos colegas, como se fossem parentes, a cada esquina”.
Ainda no espírito do Congresso, publicamos dois ensaios que tensionam perspectivas deterministas e dogmáticas na psicanálise. Em “Sexualidade infantil: determinismo histórico-cultural e produção vincular” (OP 629/2025), Cynara Kopittke – SBPdePA revisita transformações nas configurações familiares desde Freud, convocando a escuta a se abrir ao complexo, ao mutável, ao sujeito em devir. Já em “A Casa Verde da Psicanálise: quem são os loucos, afinal?” (OP 630/2025), Josimara Magro Fernandez de Souza – SBPRP, Marina Vieira Madeira, Ana Carolina Arcanjo Rodrigues e Ana Beatriz Di Nardo mobilizam a figura de Simão Bacamarte para questionar posturas dogmáticas que patologizam sexualidades, conclamando a psicanálise a sustentar o tumulto das diferenças.
Como lembrou Beth Mori em mensagem ao grupo de e-mails do OP, buscamos compartilhar aqui “uma psicanálise criativa, atenta à polis contemporânea e implicada com seu tempo”.
Em “O eterno retorno de Jards Macalé” (OP 631/2025), José Antônio Sanches de Castro – SBPSP presta homenagem ao artista multifacetado que nos deixou em novembro. Símbolo de liberdade nos anos de chumbo, Macalé encarnava a estranheza, a metamorfose e a ousadia de uma estética híbrida, sempre em transformação.
Mas nem sempre as transformações encontram terreno fértil. No ensaio “Por enquanto, ainda dói” (OP 632/2025), Maria Helena Ferreira dos Santos – SBPRP articula passado e presente para evidenciar a persistência do racismo estrutural no Brasil. Ela convoca a ouvir os sons ignorados, ligando massacres atuais à memória da escravização e ao Dia da Consciência Negra, perguntando que consciência realmente temos sobre o racismo.
Nesse mesmo novembro, Brasília recebeu a 2ª Marcha das Mulheres Negras, com o tema “Por reparação e bem viver”, reunindo cerca de 300 mil pessoas. Em um país que mata mulheres diariamente — sobretudo mulheres negras — a Marcha foi um ato político-cultural e de afirmação de ancestralidade e luta.
Em “Carol e Raquel, fim e começo” (OP 633/2025), Celso Gutfreind – SBPdePA acompanha a poesia do instante, o encontro de duas analistas de gerações diferentes diante da Rambla, em Montevidéu. Suas histórias — começo e fim — se entrelaçam em conversas, risos, fotografias e no sonho de viajar juntas a Buenos Aires para visitar teatros, enquanto o sol se deita e dissolve o amarelo das flores.
Também celebramos o Prêmio Sigourney Award 2025, recebido pela revista latino-americana de psicanálise Calibán. No ensaio sobre a premiação (OP 634/2025), Silvana Rea – SBPSP revisita a origem do nome, a trajetória editorial, o cuidado estético e a vocação descolonizadora da revista — fruto de 12 anos de trabalho coletivo, voluntário, amoroso.
Em “O que é a RTP-Febrapsi?” (OP 635/2025), Ana Clara Duarte Gavião – SBPSP relata aspectos da Reunião de Treinamento em Pesquisa da Febrapsi, inspirada no modelo da IPA. Um espaço de intensa troca metodológica, científica e psicanalítica entre pesquisadores, docentes e orientadores de várias instituições.
No campo das relações amorosas contemporâneas, o Mirante, podcast do OP, lançou o episódio “Casais: felizes para sempre?”, com as psicanalistas Tania Rivera (UFF) e Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), em conversa mediada por Beth Mori. Uma discussão instigante sobre vínculos, mutações e os desafios da escuta clínica nos tempos atuais.
Encerrando o mês, recebemos a notícia da morte do colega psicanalista da SBPSP, Marcio de Freitas Giovanetti. Any Trajber Waisbich, Ana Maria Loffredo e Silvia Martinelli — todas da SBPSP — escreveram despedidas emocionadas (OP 635/2025), evocando amizade, gratidão e liberdade. Suas vozes, somadas às de tantos colegas, compõem um coro que permanece quando alguém se vai — como o que fica conosco das melhores canções. Para esse sentimento, temos uma palavra bonita: saudade.
Lô, Jards, Marcio: obrigada pelo que ficou.
Com o carinho da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb), coordenadora
Ana Carolina Alcici (SPRJ)
Ana Valeska Maia (SPFOR)
Cris Takata (SBPSP)
Gabriela Seben (SBPdePA)
Giuliana Chiapin (SBPdePA)
Lina Schlachter (SPFOR)
Palavras-chave: animais poéticos, transformação, congresso de psicanálise, encontros, despedidas.
Imagem: Odilon Redon. Margaridas. 1901. Óleo, têmpera, carvão e pastel sobre tela. Museu d’Orsay.
Categoria: Editorial
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