Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 55
Novembro/2024
Propomos começar este editorial por um deslocamento. Retire o seu olhar das palavras. Vá até à imagem que acompanha este texto e depois volte aqui.
Na imagem noturna em preto e branco, em um primeiro plano, estão silhuetas de corpos que usam indumentárias e acessórios militares. Ao lado das silhuetas há um objeto com rodas. Um canhão? Em segundo plano, estão outros corpos vestidos com roupas civis. É possível percebê-los, apesar da visibilidade alterada pelos grossos riscos da chuva e pelo choque dramático da luz. Os corpos em segundo plano, dessa forma, se assemelham a espectros. Como um todo, a imagem tece seu efeito no contraste. E o contraste, em arte, gera um impacto estético que se dirige às nossas emoções.
Na noite de 1º de abril de 1964, com uma câmera escondida, Evandro Teixeira fez a fotografia intitulada “Tomada do Forte de Copacabana”. Este fotógrafo – um dos maiores nomes do fotojornalismo brasileiro, faleceu no início deste mês e deixou um acervo impressionante. Muitos dos principais acontecimentos no Brasil durante a segunda metade do século XX foram registrados por ele, inclusive vários episódios que evidenciaram a violência do regime militar instaurado em 1964.
Em um livro sobre o anacronismo e o retorno das imagens, o filósofo Georges Didi-Huberman disse: “Sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo.” O que vemos, o que nos olha na imagem de Evandro Teixeira? Mais do que um registro do que passou, a imagem confronta o espectador com um tempo mnêmico, anacrônico, movediço. Nesse sentido, a temporalidade da imagem conduz a um instante que não se foi, que ainda está aqui.
Em 2024, o golpe de Estado que instaurou uma ditadura no Brasil completou 60 anos. De lá pra cá foram 21 anos de ditadura civil-militar, (civil, pois vale lembrar que as elites brasileiras apoiaram e financiaram o regime ditatorial), período seguido por uma busca de abertura democrática que resultou na Constituição Federal de 1988, com seus princípios, direitos, garantias e deveres, constituindo um aparato legal que dá sustentação ao pacto democrático.
Nesse intervalo de tempo, algo fundamental, no entanto, não foi feito. Referimo-nos à efetivação da justiça perante os crimes atrozes cometidos durante a ditadura brasileira. Quando a justiça falha há a manutenção de uma ferida que nunca cicatriza. A ausência da justiça torna-se uma fissura que se alastra e age na fragilização dos laços sociais. Vale lembrar que na gênese da justiça viceja a virtude que possibilita uma vida em comunidade. É a justiça que regula as relações entre as pessoas e graças à qual uma vida comunitária pode existir, como escreveu Aristóteles em sua Ética a Nicômaco.
Aqui no OP, novembro de 2024 foi um mês fértil. Ao todo foram 10 ensaios publicados. Uma parte dos textos deu continuidade ao compartilhamento de trabalhos apresentados no recente Congresso da FEPAL. A outra parte dos ensaios versou sobre temas que foram do cinema às recentes tentativas de golpe de Estado, das injustiças sociais que permanecem ao que nos afeta e mobiliza como cidadãos e psicanalistas.
O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles, adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, impulsionou a escrita de “Ainda estamos aqui” (OP 543/2024), de Ellen Bornholdt Epifanio – SPPA. A narrativa se passa no início da década de 1970, no Rio de Janeiro, durante a vigência do AI-5. Como espectadores, adentramos na casa da família Paiva à beira da praia, no Leblon. Entre o mar e a casa acompanhamos o movimento de pais e filhos, a vinda de amigos para confraternizar. Tudo acontece como se folheássemos um álbum familiar, com seus registros de laços de intimidade. A vida é solar, com exceção de alguns olhares de soslaio de Eunice Paiva, que percebe, nas entrelinhas, o anúncio do futuro. Após o sequestro e o desaparecimento de Rubens Paiva, a cor esmaece junto à espera do retorno, as sombras se depositam na casa de cortinas cerradas até esvaziarem tudo, inclusive as esperanças. É nesse oco que uma força insiste, destacada no ensaio como a resiliência de Eunice Paiva.
Contar a história da família Paiva é também realizar um trabalho contra o esquecimento. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade acerca do caso Rubens Paiva, ele foi executado por agentes públicos no DOI do I Exército. O caso dele se soma ao de tantos desaparecidos políticos na época, que foram presos arbitrariamente, torturados até a morte e tiveram seus cadáveres ocultados.
O relatório da CNV também indica que Amílcar Lobo, então tenente-médico do Exército, e candidato a psicanalista na SPRJ, fez um atendimento médico em Rubens Paiva na sala de tortura. Foi, provavelmente, uma das últimas pessoas que viu Rubens Paiva vivo. No surpreendente torvelinho das histórias, o livro da psicanalista Helena Besserman Vianna, “Não conte a ninguém…”, traz dados sobre o caso da participação de Amílcar Lobo como um agente da tortura/ditadura e o posicionamento omisso das Sociedades Psicanalíticas do Rio de Janeiro na época.
A publicização no dia 21 de novembro da investigação da Polícia Federal, revelando um plano golpista que, além do objetivo de tomada do poder democrático, visava também o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do STF, Alexandre de Moraes, reativou um texto de 2020 escrito por Luiz Meyer, da SBPSP. “Porque haverá golpe” (OP 544/2024), faz um convite ao pensar. Ao evocar o texto de Freud sobre as memórias do presidente Schreber, o autor constrói relações pelo rastreamento de falas e atos de Jair Bolsonaro, em busca de um elemento organizador nuclear. Como é de conhecimento geral, o ex-presidente costuma exibir um estilo truculento e nunca escondeu sua admiração pelo regime militar, homenageando, inclusive, torturadores. Todavia, a ênfase do texto se dirige ao empenho de Bolsonaro em anular a multa para os pais que não utilizavam a cadeirinha para transporte de crianças. Vale acompanhar a engenhosidade do autor do ensaio na tecitura de seus argumentos de porque haverá golpe.
No grupo de emails do OP o texto de Luiz Meyer instigou uma fértil troca de comentários sobre a participação militar em golpes e tentativas, colocando a questão em perspectivas que permitiram a mirada por ângulos diversos, alertando para o perigo de generalizações.
No Dia da Consciência Negra foi publicado o texto de Paulo Henrique Favalli – SPPA, “A escravidão no Brasil atual e as novas cabeças de Zumbi” (OP 542/2024). O autor destaca o tema da escravidão e pergunta: “Como foi possível suportar, por mais de três séculos, essa prática desumana?” Sublinha a relevância de Zumbi dos Palmares como símbolo da resistência e luta contra a escravidão, bem como busca ampliar o debate para como “a escravidão perdura entre nós com novos disfarces”, atingindo todos que são privados de uma vida com condições mínimas de dignidade.”
Na esteira das ideias de justiça social, o ensaio de Bruno Figueira, da SBPSP, “Gustavo Gutiérrez (1928-2024): opção pelos pobres” (OP 541/2024), ressalta a importância de Gustavo Gutiérrez, falecido em outubro e considerado o “pai” da Teologia da Libertação. Com ênfase no combate à pobreza, o escrito de Bruno Figueira destaca uma fala de Gutiérrez: “Temos que resolver a questão da pobreza. A pobreza é morte precoce e injusta. A pobreza destrói pessoas e famílias. A pobreza nunca é boa, nunca.” E defende um ponto de vista sobre o envolvimento de psicanalistas afim de combater as estruturas que sustentam a pobreza: “penso que há, sim, escolhas políticas eticamente orientadas que podemos tomar, especialmente como comunidade psicanalítica, através de nossas instituições locais, nacionais e continentais, para fazer a nossa opção preferencial pelos pobres.”
Em um mês no qual aconteceu um intenso debate público sobre o fim da escala 6×1, e, no G20, foi criada a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, os dois ensaios acima tocaram em princípios e objetivos fundamentais do Estado brasileiro, necessários e sempre urgentes, os quais não podemos esquecer: o respeito à dignidade da pessoa humana e a busca da erradicação da pobreza.
E nós, psicanalistas como estamos? Como está a nossa formação e como nos relacionamos institucionalmente? “Formação e riscos de fanatismo: sobre a clínica e as incertezas atuais”, foi a reflexão proposta por Luciana Saddi – SBPSP (OP 537/2024). Atenta à complexidade da formação psicanalítica e aos desafios contemporâneos que desaguam na clínica, a autora elenca períodos descritos por Balint e a partir daí problematiza questões referentes, entre outras, ao que contribui com a autonomia e a criatividade do psicanalista, com maior abstração, mais reflexão e risco, e o que, por outro lado, pode conduzir à identificação com o próprio analista e idealizações sobre a Escola de psicanálise, atrelados a modelos de setting determinados fora da experiência do par analítico, levando ao risco do fanatismo.
Cláudio Laks Eizirik – SPPA (OP 538/2024) e Virginia Ungar – APdeBA (OP 539/2024) participaram juntos de uma mesa no Congresso da FEPAL com textos desenvolvidos a partir do tema “Entre o dogmatismo, a tradição e a abertura nas instituições psicanalíticas”. Os dois autores desempenharam funções de liderança institucional e compartilham, nos textos apresentados, alguns aspectos dessas experiências e de suas trajetórias como psicanalistas. Destacam paradoxos, mutações, contribuições, aprendizados e desafios do porvir que atingem psicanalistas, institutos de formação e instituições. Afinal, como pontua Claudio Eizirik, “a história da psicanálise, como obra em construção, é o relato e a tentativa de entendimento do sempre difícil convívio entre tradição, dogmatismo e abertura, em nossas instituições.”
“O Quarto Eixo da Formação Psicanalítica e suas implicações”, é o tema do ensaio de Sergio Eduardo Nick – SBPRJ (OP 540/2024). Para falar do quarto eixo, o autor traz a sua experiência na vida institucional. Ressalta que as atividades institucionais “nos enriquecem como sujeitos, ajudam a construir o campo psicanalítico, e criam uma vivência de pertencimento tão ameaçada pelos ataques que a atuação do instinto de morte enseja.” Afinal, diz Sergio Nick, a subjetividade de cada pessoa “se constitui a partir de uma complexa rede de diferentes conjuntos, aos quais o sujeito está relacionado”, tais como cultura, relações interpessoais, ao traumático e às transmissões inter e transgeracionais que ocorrem na instituição psicanalítica.
O ensaio de Camila Bustamante Pires Leal – SBPRJ e Maria Alice T. Baptista – SPRJ, teve como foco “O impacto do envelhecimento do analista nos Institutos de Formação” (OP 545/2024). Tomando como referência os dados da pesquisa do Comitê Perspectivas Psicanalíticas sobre o Envelhecimento, as autoras destacam que os números apontam para um alto contingente de psicanalistas com mais de 60 anos em atividade nas sociedades psicanalíticas. Perguntam: “Qual o impacto disso em termos institucionais? E dentro dos Institutos voltados para a formação de novos analistas, quais as repercussões deste alto número de analistas de idade avançada?” Confrontadas com uma realidade escassa em trabalhos sobre o envelhecimento dos psicanalistas, as autoras indagam: “os analistas têm dificuldades com o envelhecimento e a velhice?” O ensaio caminha por vários vértices dessas e de outras questões, assim como propicia o conhecimento do que atualmente está sendo discutido fora do Brasil sobre o envelhecimento de psicanalistas.
O último ensaio de novembro publicado no OP, “A essência simbólica do ser humano: sua força e sua fragilidade” (OP 546/2024), foi escrito por Ruggero Levy – SPPA. O autor discorre por duas vias, a da capacidade simbólica do ser humano que constitui a sua força, a sua criatividade, fonte da riqueza estética e científica no mundo. Alerta que, simultaneamente, a capacidade simbólica é também a fragilidade do ser humano. Essa fragilidade se manifesta, por exemplo, no ódio ao estrangeiro. Por isso, segundo o autor, “cada um de nós pode ser presa do pensamento fanático.” No ensaio, também argumenta que os desafios das sociedades psicanalíticas e de seus institutos têm sido maiores do que em outros tempos. Ruggero Levy pontua, por fim, que o desafio da psicanálise, dos psicanalistas e das instituições psicanalíticas é “manter a capacidade de pensar frente ao novo, à nova ideia.”
Pensar o novo, estar no tempo, recriar a vida. Caminhamos para concluir o editorial desse mês intenso que foi novembro de 2024. De volta ao começo, às imagens que retornam e que nos olham, recordamos a leitura e, especialmente, o título de um livro de Leopold Nosek, “A disposição para o assombro”. Em uma época que nos oprime com uma onipresença de palavras e imagens, muitas delas falsas e distorcidas, quando importâncias são banalizadas e desprezadas, talvez a nossa disposição para o assombro precise encontrar meios de reativação. Um assombro criativo, que abra portas para o infinito. Nosek diz: “(…) penso que assombro e infinito são os pilares da ética a ser exercida na clínica psicanalítica, e são eles também que dão um caráter sublime ao estético quando, diante do infinito, o espírito se move e num instante de fulguração tem uma parcial revelação de sentido”.
Concluindo o editorial, comunicamos que Helena Cunha Di Ciero, que sempre nos encanta com seus textos sensíveis e seu bom humor, deixou, em novembro, a equipe de curadoria do OP. Sentiremos saudades, Helena, e estamos torcendo por você em seus novos caminhos e projetos. Aproveitamos para indicar a leitura do novo livro de Helena, lançado em novembro, pela editora Quelônio: “O que enxerguei quando seus olhos ficaram opacos”. Escritora que é, continue a enviar seus ensaios para o OP!
Um abraço nosso, com o carinho de sempre.
Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), Lina Schlachter (SPFOR), Vanessa Corrêa (SBPSP).
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Evandro Teixeira. Impressão fotográfica. Tomada do Forte de Copacabana, madrugada de 1º de abril de 1964. Acervo: IMS.
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Ditadura cívico-militar, Instituições Psicanalíticas, Imagem.
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