Observatório Psicanalítico OP-Editorial maio/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 49

Maio/2024

“É o pau, é a pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

[…]

São as águas de MAIO fechando o verão

É a promessa de vida no teu coração…”

Em tempos de tantas alterações climáticas, pedimos licença a Tom Jobim para alterar suas “Águas de março” para maio. Águas que, junto com uma série de outros fatores, afetaram 469 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul, atingindo mais de 2.3 milhões de pessoas, das quais 581 mil estão desalojadas e em torno de 50 mil vivendo em abrigos temporários. 172 mortos e dezenas de pessoas ainda desaparecidas. Mais de 12 mil animais resgatados e a difícil certeza de que os números desta tragédia ainda estão em aberto. A maior catástrofe da história do estado que revela a situação alarmante do planeta e da sociedade atual.

Derrida usa a expressão “acontecimento maior” para descrever “alguma coisa que acontece pela primeira vez e que ainda não sabemos realmente como identificar, determinar, reconhecer, ou analisar, mas que deveria ficar a partir de agora inesquecível: um acontecimento indelével no arquivo compartilhado de um calendário supostamente universal.” Ele explica que esta coisa, o local e o significado do “acontecimento”, permanece inefável, com um sintético sem conceito, uma unicidade sem qualquer generalidade no horizonte ou sem horizonte algum, fora do alcance para uma linguagem que admite sua impotência e é reduzida a pronunciar mecanicamente uma data. Assim não sabemos o fato que estamos dizendo ou nomeando, como o “11 de setembro”, conforme exemplifica Derrida. A brevidade do nome, um número, destaca o inqualificável, reconhecendo que não o reconhecemos ou sequer conhecemos, que ainda não sabemos como qualificar, que não sabemos bem o que estamos falando ou como aconteceu, mas sabemos que terá grandes consequências, como no caso desta catástrofe no RS que tem sido chamada de “enchentes de maio”.

Diante do impacto deste acontecimento maior, algo também inédito no OP aconteceu: nossa equipe da curadoria, em solidariedade e respeito aos colegas do RS, decidiu focalizar o nosso olhar para o acontecimento que se impôs com tanta força e violência que interrompeu o curso dos rios de palavras que corriam entre nós. Uma inundação que afetou não só o Rio Grande do Sul, mas a todos nós, brasileiros, com estranhas sensações e sentimentos de impotência e vulnerabilidade. Abrimos um espaço para acolher a dor daqueles que foram diretamente afetados, bem como para a divulgação de iniciativas de ajuda à população gaúcha. Priorizamos as publicações sobre temas relacionados a essa situação de emergência, ratificando o papel do OP na sua função de elaboração, do resgate das palavras que possibilitem que nossas vozes se unam diante do indizível.

Foi um mês cheio de água e escrita. Onze textos, muitos comentários, colegas gaúchos e de outras regiões faziam-se presentes neste solidário processo de pensar coletivo. De mãos dadas. Laços de palavras.

Já nos primeiros dias de maio, Maria Luiza Gastal (SPBsb) no ensaio “Mudança catastrófica: estamos afogados em lágrimas e solastalgia (OP 494/2024) faz um alerta sobre as questões climáticas no RS e no mundo. Diante da devastação, a autora nos conta sobre a expressão “solastalgia”, essa dor ou doença psíquica decorrente de uma perda ou do sentimento de isolamento ligado à supressão, aniquilamento ou risco de desaparecimento da casa ou do território de alguém. O sofrimento dos sujeitos ou comunidades quando seu local de moradia e vinculação territorial é atacado. Maria Luiza faz também um paralelo entre os conceitos de “Gaia”: o conjunto de relações que ocorre no planeta que articula seres vivos; “Intrusão de Gaia”: o enorme acontecimento que se manifesta no aquecimento global e eventos associados como a extinção massiva de espécies, acidificação dos oceanos, pandemias, eventos climáticos extremos; e “Luto ambiental”: buscando as razões da nossa inação diante das evidências inegáveis de que a mudança climática afeta o planeta e a psique humana, um luto invalidado, no qual a desmentida é uma saída de vida. A autora ressalta a urgência desta temática e afirma que: “A psicanálise do mundo das catástrofes precisa ser capaz de imaginar este outro mundo, com outras relações. Precisa ser capaz de se debruçar sobre subjetividades que emergem nesse novo e ameaçado mundo, iluminada pela catástrofe que não vai passar, mas se agudizar. Não se separam os fatos da emergência climática do fazer da psicanálise, porque a psicanálise não pode ficar apartada do mundo, debruçada sobre um inconsciente sem história social. O mundo da catástrofe também está lá, na sala de análise, e ele está acabando.”

Em “Uma crônica sobre o humano” (OP 495/2024), Ruggero Levy (SPPA) convida a uma reflexão sobre o humano e sobre a cultura e o sistema socioeconômico em que estamos inseridos. O autor fala de uma parte brilhante da humanidade percebida através das atitudes de solidariedade nos abrigos e nas ações voluntárias, mas também da face sombria revelada através dos abusos e roubos. Ruggero questiona “onde estavam os bens materiais doados antes da tragédia e onde estavam os olhares cheios de compaixão, toda essa generosidade e disponibilidade afetiva?” E fala então do quanto o sistema e a cultura são perversos uma vez que “deixa desassistidos e excluídos parcelas enormes da população, que não aplica a riqueza do país em sistemas de proteção contra tragédias climáticas, que segue emitindo freneticamente gases poluentes na atmosfera apesar dos alertas da ciência de que este caminho levará a desastres climáticos crescentes…Sistema em que o sujeito fica capturado pela necessidade de produzir e consumir freneticamente o que o encerra num circuito narcisista em que não há lugar para o outro”. Entretanto, acredita que “a catástrofe rompe a engrenagem produtiva do sistema e liberta o sujeito para conectar-se com a humanidade, sua e do próximo.”

No ensaio “A escuta psicanalítica como abrigo” (496/2024), Giuliana Chiapin (SBPdePA) reflete sobre a escuta neste cenário com tantas dores e perdas que parece misturar cenas de “guerra, pandemia e algo inédito ainda incompreensível”. A autora conta da experiência no abrigo e no consultório, neste exercício amplo e coletivo de abrigar. Ao mesmo tempo que ressalta a ampla e rapidamente articulada rede de solidariedade, Giuliana descreve os impactos dos acontecimentos através do sofrimento “por essa quantidade de água que não deságua, que transborda, invade, inunda, rompe, que deixa ilhado, sem acesso e por vezes mata” fazendo assim uma analogia ao trabalho analítico como oposto a isso. Através da emblemática imagem do cavalo Caramelo em cima do telhado, a autora traz uma série de questionamentos, dentre os quais sobre a “desigualdade e a diferença social que vivemos onde uns são inundados de recursos e possibilidades e outros sobrevivem espremidos na miséria” bem como sobre “as consequências do que acontece com a gente quando a natureza, que somos nós, não está bem.”

Em “Sertão do Ceará, 1934. São Paulo,12 de dezembro de 1982. Rio Grande do Sul, 30 de abril de 2024” (497/2024) Selma T. O. Fernandes Jorge (SBPSP) relata a experiência com inundação em SP em sua infância e traça um paralelo entre as inundações no sul do país e a seca que castiga o Nordeste. A autora nos lembra o quanto estas questões são antigas e que igualmente na atualidade “o pai Estado, o pai da pólis faltava, retirava o tudo e oferecia os filhos aos filhos: as mãos fraternas que acolhem.” Selma ressalta que estes eventos extremos não podem mais ser tratados como imprevistos e que vários projetos aprovados no congresso são nocivos ao ambiente. A autora explica que no programa “Brasil 2040” (governo Dilma Rousseff) “os modelos matemáticos usados pelo estudo projetaram um cenário climático muito semelhante ao que se vê no Brasil quase 10 anos depois: escassez de chuvas na região Norte e chuvas acima do normal no Sul do país. Apesar disso, o programa foi abruptamente encerrado em 2015. Era, segundo Unterstell, algo como o embrião de uma política pública para a adaptação climática do país.” Selma nos lembra ainda que “apesar de o Brasil contar com um Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima desde 2016, o documento nunca teria saído do papel ”Entretanto, alerta que “o rio é democrático, entra em todas casas, pobres ou ricas. A morte e vida em João Cabral torna todos nós retirantes nesse momento.”

No ensaio “Afasia criadora: O paradoxo de Primo Levi. ‘Este silêncio é feito de agonias’, Mario Quintana” (498/2024), Carolina Scoz (SBPCamp) explica que quase sempre, diante de nós, temos sobreviventes de catástrofes, que seguirão elaborando, vida afora, seus traumas. A autora fala da necessidade dos afetados pelas enchentes de “recontar mil vezes o irredutível das emoções vividas no corpo. Frio, sede, dor. Sonhos naufragados, em poucas horas. Pavor, tristeza, desamparo”. Contudo, para os outros, “nós, aqui onde a terra permanece seca, logo poderemos descansar na prerrogativa humana de banalizar tragédias, resumindo essas semanas de maio a uns vocábulos: “terrível”, “descaso”, “crime”, “horror”, “absurdo”. Eles, os sobreviventes, para sempre buscarão o amparo de mais e mais palavras. “Quem desenvolveu essa ideia – e com a força de quem viveu o fenômeno –, foi Primo Levi. Isto porque, “quanto maior a exposição de uma pessoa ao nu e cru da realidade mais lhe faltarão as palavras capazes de tradução e mais – eis aqui outro paradoxo – essa afasia traumática precisará buscar o socorro das palavras. Aos que sobreviverem, então, restará o trabalho interminável de criar maneiras de falar, a despeito da impossibilidade de qualquer plenitude expressiva.” Qual a consequência fundamental disso? Os sobreviventes (e seus descendentes, por gerações) nunca encerrarão a história que narram (e não será bem isso o que continuamente os salva?), reflete Carolina.

Em “uma catarse coletiva de um grupo de analistas e amigas que compartilharam as angústias diante das enchentes”, Aline Wageck, Candice Campos, Caroline Buzzatti, Fernanda Crestana, Julia Frozi, Julia Goi, Luciana Sokoloski, Mariana Torres, Marina Gastaud, Martina Schilling, Nyvia Sousa, Paula Saffer, Stefania Teche (SPPA) escreveram o ensaio “Catástrofe, catarse e tentativa de transformação em acontecimento psíquico” (499/2024). Através de diálogos e reflexões as autoras discorrem sobre os sentimentos e paradoxos suscitados nesta intensa vivência que inundam a capacidade de continência. As autoras trazem o aspecto da culpa que aflorou de diferentes formas: pela sensação de não estar ajudando o suficiente, pelos privilégios diante da desigualdade social, por não conseguir ser o super-herói da infância. “O que vivíamos antes dessa tragédia nos impunha quase que uma necessidade de desmentir. Reconhecemos a desigualdade, sofremos e empatizamos com isso, mas não nos sentimos impedidos de ostentar privilégios. Agora estamos diante de algo agudo, intenso e cruel, que não nos permite desmentir, nos calarmos ou nos cegarmos diante do que se passa. Fomos inundados, sem aviso prévio. A inundação psíquica rompe com a desmentida e com qualquer defesa. Mas tem algo narcísico nessa culpa. Os pobres eram os outros, a enchente afetou gente como a gente.”

Em “Terra devastada, Mães devastadas, Agônicas raízes” (OP 501/2024) Silvana Rodrigues de Barros (SPFOR) e Álvaro Madeiro Leite (Faculdade de Medicina UFC) nos levam ao encontro com o indizível da dor dessas mães que perderam seus filhos nesta tragédia. “Que tipo de escuta poderá ajudá-las a narrar o inverossímil, expondo as fraturas da representação frente ao horror e à catástrofe?” questionam os autores. E explicam: “as mães do Rio Grande buscam palavras, acolhimento e continência. Torna-se imperiosa a necessidade de falar da experiência traumática de perder a casa, o filho, e do desnorteamento de deixar tudo para trás. O traumático, se não for acolhido e legitimado, pode produzir um sujeito desamparado, invisível ao outro.” Destacam que este horror não pode ser negado e precisa se abrigar em nós, já que tudo deve mudar, não se pode permanecer da mesma forma quando passada a turbulência das águas. Apesar de tudo, “ainda que tristes e perplexos, jamais abandonaremos a esperança de que a terra alagada e desolada se transforme em campo de brilho primaveril, com semente e flor como promessa de vida.”

Um “Vocabulário encharcado” (OP 502/2024) nos é apresentado por Juliana Lang Lima (SBPdePA) ao falar da “quantidade de novos significantes que passaram de desconhecidos a habituais”, tantas novas palavras que foram acrescentadas no dia a dia dos gaúchos, resultado desta catástrofe traumática. A autora discorre sobre a ampliação do mundo psíquico através das experiências da maternidade e da pandemia e devido à vivência nas enchentes de maio compartilha vocábulos como: “Excesso de água. Muro da Mauá. Nível do Guaíba. Sistema de bombeamento. Dique. Resgate. Abrigo. Pessoas. Animais. Vidas. Voluntários. Desalojados. Desabrigados. Bloqueios. Sujeira. Fedor. Leptospirose. Tétano. Hepatite. Diarreia. Insônia. Medo. Depressão. Raiva. Dmae. Ebab. Ebap. Eta. EITA. Falta de planejamento. Falta de manutenção. Pessoas não deveriam morar nesses lugares. Frio. Raiva. (Mas não é hora de politizar a tragédia, eles dizem). Sarandi, Humaitá, São Geraldo, 4⁰ distrito, Praia de Belas, Menino Deus, Cidade Baixa, Centro Histórico. Falta de água. Mas como, se ela não escoa, insistindo em permanecer ali por quase 30 dias? Corredor humanitário. Doações. Solidariedade. Fake news. Raiva. Falta de luz. O estado todo está no maior escuro de sua história. Galocha. Lava-jato. Rodo. Lama. Ratos. Peixes. Baratas. Esgoto. Peste”

No ensaio “Enchentes e a revelação da Zona de Desinteresse” (OP 503/2024), Ellen Bornholdt Epifanio (SPPA) faz uma relação do filme Zona de Interesse – “que em uma primeira camada, aborda o horror do nazismo, mas em outro estrato, se endereça a tantos jardins separados pelo muro da negação da nossa realidade factual e intrapsíquica” – com a situação das enchentes. Segundo a autora: “vivemos em uma fina camada de negação que se esfacela com o que emerge das águas transbordantes.” Ellen afirma que “as enchentes de maio de 2024 revelam o que sempre esteve ao nosso lado, por detrás do muro da Mauá: o estado falido por décadas consecutivas, a miséria de grande parte da população, as medidas inexistentes de proteção para catástrofes, o aquecimento global e suas consequências, o grito de cientistas silenciados, falta de investimento no que não está visível (como o sistema hidráulico)” e como no que parece um resumo da situação, descreve: “Testemunhamos cena de guerra. Helicópteros. Abrigos com milhares de pessoas. Abrigos para alguns já desabrigados. Abusos dentro dos abrigos. Voluntários levando comida. Socorristas. Mães entregando seus bebês aos barcos. Cachorros nadando rumo à botes salva-vidas. Ataques aos socorristas. Cavalo em cima do telhado. Casas, pontes, estradas, carros, e até o nosso aeroporto abaixo da água. Falta de luz. Falta de água. Mortes. Doenças. Esses são os resíduos tóxicos que os “diques da negação” romperam. Tudo isso nos coloca frente ao efeito dominó que virá: miséria, doenças, violência, desemprego, problemas psicológicos de toda ordem, e, pior, as novas chuvas. Aprenderemos algo com isso? Ainda tenho esperança que sim, se não seguirmos envoltos em uma camada de negação, se preferirmos, acima de tudo, a verdade.”

No último ensaio do mês, Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld (SBPdePA) nos conta do “Projeto de Ação Emergencial SBPdePA Enchente maio/2024” (OP 504/2024). Com o objetivo de auxiliar as pessoas atingidas e os profissionais que atuam e atuaram no resgate das vítimas e no cuidado e atendimento das mesmas, a SBPdePA, desde o início dos trágicos acontecimentos, desenvolveu um Projeto de Ação Emergencial para o atendimento gratuito para as vítimas dessa catástrofe, bem como aos profissionais e voluntários civis que cuidam das vítimas. O Projeto é constituído por duas linhas de ação: o atendimento on-line, que tem cerca de 180 profissionais atuando e mais de 100 pessoas já estão se beneficiando deste serviço, e o atendimento presencial em abrigos de resgatados e desalojados de suas moradias, que conta com 42 colegas. O projeto conta ainda com o apoio do PACE – Assistência Psicanalítica em Crises e Emergências/IPA e também do SOS Brasil da Febrapsi. Patricia relata que os problemas encontrados nos atendimentos são crises de ansiedade, pânico e depressão e destaca “a enorme demanda pela escuta analítica, quando acessível às pessoas de baixa renda, e o enorme potencial das instituições psicanalíticas para o trabalho junto à comunidade.”

Para Krenak “os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há um futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui. Gosto de pensar que todos aqueles que somos capazes de invocar como devir são nossos companheiros de jornada, mesmo que imemoráveis, já que a passagem do tempo acaba se tornando um ruído em nossa observação sensível do planeta.”

Em meio às enchentes de maio, publicamos  o ensaio número 500, OP 500/2024, escrito pela equipe da curadoria: Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), Lina Schlachter (SPFOR) e Vanessa Corrêa (SBPSP) como uma celebração a todos que vieram antes e aos que seguem ativa e criativamente participando desta história. Ensaio que celebra o percurso do OP como dos rios que, segundo Krenak, por sua riqueza e potência, “são capazes de percorrer longas distâncias, de encontrar novos caminhos, de mergulhar dentro da terra e – porque não? – de voar.” 500 ensaios desde 2017 percorrendo o curso dos acontecimentos no Brasil e no mundo. Ensaio 500 celebrou a escrita como acontecimento e o OP como espaço de abertura do nosso olhar para outros universos, ora com grandes angulares, ora com lentes microscópicas. Uma multiplicidade de vozes e olhares que se voltam para o mundo e aqui se expressam, como numa sinfonia de acordes dissonantes, em que o resultado é inesperado e, ao mesmo tempo, vai-se compondo como obra única de autoria coletiva.

Diante do seu compromisso de voltar-se para o mundo e de sermos parte de nossos acontecimentos e não meros observadores assépticos de nossa civilização, aproveitamos este editorial para lançar mais uma categoria do OP: “Emergência Climática”. Emergência no sentido de algo que emerge, uma coisa nova, um novo regime climático. Emergência no sentido de algo que precisa ser resolvido rapidamente. Do ponto de vista psicanalítico algo que emerge em nossa subjetividade diante de um mundo novo que é mais hostil e também emerge na psicanálise como necessidade de enfrentar estes novos aspectos. Agradecemos a Maria Luiza Gastal por nos ajudar a pensar nestas questões.

Marcelo Gleiser diz que marchamos, resolutos e sem questionamento, em direção à autodestruição, confirmando a ideia de uma mudança subjetiva urgente. Ele afirma que “precisamos nos reinventar, sem abandonar nossos feitos até aqui, mas reorientando nossas tecnologias e nosso crescimento econômico numa nova direção ética que trata a Terra e sua biosfera como uma comunidade sagrada à qual pertencemos – não como seus donos, mas membros, em pé de igualdade, com as outras criaturas.” Somos parte da coletividade da vida, codependentes e coevoluindo com toda a biosfera. O que precisamos agora, ressalta ele, “é de uma nova consciência planetária, que se reflete nas escolhas que fazemos: como comemos, como usamos energia e água, como nos relacionamos com as pessoas e com os animais, como nos posicionamos em relação ao planeta. Considerando o papel das revoluções no passado, essa seria a de maior impacto na história da humanidade, a primeira vez na nossa história coletiva em que nos unimos não como esta ou aquela tribo ou este e aquele grupo político lutando por seus direitos, mas uma espécie inteira lutando pela sua sobrevivência e pela dignidade de todas as criaturas vivas.”

Nesta linha, lançamos neste mês dois episódios da  4a temporada “O sexual na Pólis” do Mirante: o 8o episódio intitulado “As cidades no tempo da dor das mudanças climáticas catastróficas.” e o 9o episódio “Eros, o saber e a política”.

Em “As cidades no tempo da dor das mudanças climáticas catastróficas” os convidados Maria Luiza Gastal (SPBsb) e o biólogo e professor Paulo Brack dialogaram sobre o desastre ambiental que estamos vivenciando aliado ao despreparo estrutural das cidades diante de variações climáticas extremas. Debateram ainda sobre o que está ao alcance do trabalho psicanalítico neste tempo incerto e instável e o que é possível diante de mudanças catastróficas.

Tatiana Roque, matemática, filósofa e historiadora foi a convidada junto com o psicanalista Miguel Calmon (SBPRJ) no episódio “Eros, o saber e a política”. Conversaram sobre o papel da ciência como resposta frente aos problemas e dificuldades que enfrentamos, mas também sobre o questionamento da narrativa de que a ciência viria apenas para o bem da humanidade. Dialogaram sobre a substituição da ciência por especulações conduzidas por algoritmos, o distanciamento do conhecimento científico por parte da opinião pública e não participação de especialistas em espaços fundamentais da sociedade.

A página do Instagram do OP seguiu publicando todos os ensaios e notícias, com suas postagens  republicadas em muitas outras páginas. Houve uma expressiva participação do público, confirmando a necessidade de fazer a palavra circular na busca de algum sentido e elaboração.

Um longo e transbordante mês! À medida que a água baixa nas cidades do RS, mais intensas são as imagens da destruição. Sabemos que muitas delas sequer poderão ser fotografadas, o registro da dor, das perdas e do trauma ficará no mundo interno de cada um atingido por esta catástrofe. Bortoluci diz que “a guerra não é a única medida de horror. Para muitas sociedades como a brasileira, ela nunca foi a fonte fundamental de palavras e memórias a partir das quais compomos nossa enciclopédia de brutalidade. Nossas catástrofes têm outros nomes – colonização, genocídio, escravidão, racismo, devastação ambiental. Seus instrumentos são a rodovia, a cerca, os micróbios, os navios negreiros, a bala, o machado, o capitão do mato.” Precisaremos seguir atentos. Precisaremos ainda de muitas palavras e ações enquanto sociedade. E esperamos que o OP possa seguir sendo este espaço transformador dos acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo. Acreditamos que a saída é sempre coletiva e que neste coletivo é preciso incluir todos os seres para além dos humanos.

“Se você é um poeta, verá claramente que existe uma nuvem flutuando sobre essa folha de papel. Sem a nuvem, não há chuva; sem chuva, as árvores não crescem; e sem as árvores, não podemos fazer papel…

Portanto, podemos dizer que a nuvem e o papel intersão…

Tudo – o espaço, o tempo, a Terra, a chuva, os minérios no solo, o brilho do Sol, a nuvem, o rio, o calor e mesmo a consciência – está nessa folha de papel. Tudo coexiste com ela.

Para ser é preciso interser.

Você não pode ser sozinho; você precisa interser com todas as outras coisas.

Mesmo que tão fina, essa folha de papel contém tudo o que existe no universo.”

Thich Nhat Hanh, The Other Shore

(O despertar do universo consciente: Um manifesto para o futuro da humanidade by Marcelo Gleiser)

Um forte abraço da equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBsb),

Ana Valeska Maia (SPFOR),

Gabriela Seben (SBPDEPA),

Giuliana Chiapin (SBPDEPA),

Gizela Turkiewicz (SBPSP),

Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),

Lina Schlachter (SPFOR),

Vanessa Corrêa (SBPSP).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Casa de Cultura Mário Quintana inundada em Porto Alegre/Rio Grande do Sul – Anselmo Cunha/AFP

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Catástrofe, Emergência Climática, Rio Grande do Sul

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Categoria: Editoriais
Tags: Catástrofe | editorial | Emergência Climática | observatorio psicanalitico | Rio Grande do Sul
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