Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 50
Junho/2024
“Você sempre volta com as mesmas notícias”, cantou Cazuza. O mundo evolui em tantos aspectos, mas em outros, mantém-se numa repetição incessante. Recordar, repetir para tentar elaborar. E escrever, para comunicar.
Começamos o mês de junho com o texto “Uma Terra, Muitas Dores” (OP 505/2024) de Daniela Boianovsky (SPBsb). A autora aborda os desafios como o preconceito e o ódio direcionados ao povo judeu. Pontua a polarização, a violência e a necessidade de tolerância e coexistência em meio à diversidade de opiniões. Defende a importância da busca por um entendimento pacífico para o conflito israelo-palestino, enfatiza a necessidade de combater o extremismo, promover o diálogo e construir pontes para a coexistência e uma possível solução de dois Estados na região. Daniela escreve: “Temos visto, cada vez mais em tempos de redes sociais, a equação que soma o anseio humano por pertencer à satisfação pulsional em odiar – quanto maior o compartilhamento do ódio ao outro, maior a confirmação de pertencimento. No meu grupo habita o herói, no outro, o inimigo. De um lado, o oprimido, do outro, o opressor. O ciclo se fecha. No reinado do binarismo, o hiato que separa, cega e ensurdece, é soberano. Estimular o fundamentalismo de um lado, é reforçá-lo em seu oposto.”
Valton de Miranda Leitão (SPFOR) em “Democracia, Fetichismo e Religião – o homem automático, não pensante”, OP 511/2024, adverte: “O psicanalista não pode se autorizar como detentor do saber psicanalítico, pois isso o enquadraria na categoria de sujeito religioso.” E sublinha a importância do pensamento crítico como forma de resistência à alienação imposta pelo fetichismo capitalista.
Miguel Sayad (SBPRJ) questiona o posicionamento das instituições psicanalíticas frente ao mesmo conflito em “Das Zonas de Interesse ao Concerto Psicanalítico. Gaza Agora” (OP 506/2024). E declara: “Não sejamos técnicos, mas humanistas. Empenhemo-nos com nossas vozes em uníssono para condenar a matança, o massacre em Gaza, e salvar a terra e o que resta do povo palestino, restaurando a ética dos direitos humanos, a coexistência pacífica, a justiça e a bondade. A prevalência da Pulsão de Vida.”
No ensaio “Anatomia das Quedas” Rosemary de Fátima Bulgarão (SBPSP), OP 507/2024, enfatiza a compreensão: “Quanto menos encontramos compreensão, maior a chance de regredir para o território das diversas formas de violência. No território das violências, as palavras perdem seu poder de comunicar, de criar e de manter vínculos. É onde pululam os atos. Sob o primado da destrutividade, os sentimentos de desesperança, desconfiança e desconsideração trabalham desfazendo ligações e vínculos afetivos. Prevalece uma força de desligamento e desinvestimento da vida.” E conclui com uma série de perguntas provocativas: “Como é que se disseca uma queda? E qual queda? Da mulher independente e empoderada? Do império da masculinidade e do machismo? Ou a queda da ingenuidade da criança?”
Respondemos como Curadoria: São tantas as quedas empilhadas, tantos declínios no Brasil atual. Nos deparamos, novamente esse mês, com a crueldade do adulto diante da ingenuidade da criança. Assistimos, impactadas, o império da masculinidade tentando decidir o que é melhor para uma mulher. Gizela Turkiewicz (SBPSP) no #tbt do Instagram do OP nos aponta a imposição sobre o corpo feminino, no ensaio para a mulher que aborta, repouso: “Outra vez, o corpo da mulher é visto como decisão dos outros, sem levar em conta a subjetividade que habita esses corpos.”
Atualmente, temos aproximadamente um estupro a cada 8 minutos no país, conforme descrito na edição deste ano do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher. A maior parte das vítimas são meninas de 10 a 14 anos. Luciana Temer, no programa Roda Viva, menciona: “Há uma epidemia preocupante de abuso sexual infantil no Brasil. A alta ocorrência de estupros cometidos por pessoas próximas dentro do ambiente familiar é alarmante.”
Em muitos casos, quando abusada dentro de sua própria casa, o agressor é alguém próximo da família em quem ela confia. Se a vítima busca ajuda e não é acreditada, ocorre uma nova forma de traumatização. Além disso, o aborto ilegal já é uma realidade terrível no país, resultando em mortes e sérias consequências para muitas mulheres, especialmente aquelas em situações de vulnerabilidade. A falta de denúncias é frequentemente atribuída ao medo e falta de apoio adequado. Estamos diante de uma pátria que desprotege, um Estado que culpabiliza a vítima, uma desproteção que é também uma violência, um abuso. “Como reconstruir esses laços e conexões intrapsiquicamente e com o mundo quando o direito à verdade e à justiça é negado? Não se trata de vingança, mas do reconhecimento de que a reconciliação social só pode acontecer após o reconhecimento do dano e da violência perpetuada”, como dito por Bernardo Tanis (SBPSP), no encontro “Roteiros da Memória e do Esquecimento”, da Calibán (Revista Latino-americana de Psicanálise) ocorrido no dia 15.
Nós, da equipe editorial, consternadas frente ao Projeto de Lei PL 1904/2024, que propõe restringir e penalizar ainda mais o aborto no Brasil, escrevemos juntas um manifesto. Consideramos que a aprovação deste projeto representaria um retrocesso nos direitos das mulheres, atingindo diretamente meninas e mulheres em situações delicadas. A decisão de criminalizar ainda mais o aborto, especialmente em casos de estupro, é vista como um reforço à cultura do estupro e uma injustiça que vitimiza as mulheres. Como psicanalistas, alertamos para os impactos emocionais profundos causados por esse tipo de violência, afetando não só as vítimas, mas toda a sociedade.
O texto “A Luta de Maria, os Red Pills, Transfobia, PL 1904 e o Tempo Espiralar” (OP 508/2024) de Lina Schlachter Castro e Ana Valeska Maia Magalhães, ambas da SPFOR, enfatiza a importância de dar voz às histórias das mulheres e suas lutas por direitos civis, políticos e sociais. Também aborda a resistência enfrentada por Maria da Penha e outras mulheres diante de grupos extremistas misóginos, como os “Red Pills”. As autoras questionam como os psicanalistas podem contribuir para reduzir a violência contra mulheres e meninas, alertando para a necessidade de enfrentar misoginias e retrocessos na sociedade. Mencionam também a importância de respeitar a diversidade de experiências de gênero, em resposta a comentários transfóbicos enfrentados pela deputada federal Erika Hilton. Como descrito no texto: “Ofertamos o movimento miúdo de nossas palavras, ainda que contar seja muito, muito dificultoso, como nos disse Guimarães Rosa.”
Nosso Observatório está longe de apenas observar: revela, denuncia e provoca reflexão. Nesse mês, o miúdo das nossas palavras trouxe sua força. Contamos com dificuldades, mas se nos calamos, nos resignamos.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie traz as palavras precisas:
“Não é fácil conversar sobre a questão de gênero. As pessoas se sentem desconfortáveis, às vezes até irritadas. Nem homens nem mulheres gostam de falar sobre o assunto, contornam rapidamente o problema. Porque a ideia de mudar o status quo é sempre penosa. Algumas pessoas me perguntam: ‘Por que usar a palavra feminista? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido?’ Porque seria desonesto!
O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral — mas escolher uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres. Que o problema não é ser humano, mas especificamente um ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais excluía o outro. É no mínimo justo que a solução para esse problema esteja no reconhecimento desse fato.”
Susana Muszkat (SBPSP), no ensaio “O Talibã é aqui?”, OP 510/2024, vê essa proposta de lei abjeta como uma expressão sintomática: “Sintoma de um certo tipo de masculinidade, representada de forma escancarada pela maioria dos nossos parlamentares, majoritariamente homens brancos, instalados numa posição precária de poder que, longe de se preocuparem com seu dever e para o qual foram eleitos, ocupam-se em se digladiarem para manterem sua posição e status-quo, perversamente, às custas do povo brasileiro.” A autora argumenta que a proposta do projeto de lei reflete um desejo de subjugar e controlar as mulheres, semelhante às leis do Talibã, mostrando a importância de uma irmandade de pessoas comprometidas com a igualdade de gênero para combater concepções discriminatórias e preservar os direitos das mulheres.
O ensaio “Em Louvor aos Estupradores” (OP 509/2024) de Silvana Rea (SBPSP), debruça-se na inconsistência de uma vítima de estupro receber uma pena maior do que a do estuprador. Ressalta que tal proposta reflete visões ultrapassadas sobre gênero e sexualidade, baseadas em ideias patriarcais e de submissão feminina. E destaca a violência simbólica e física por trás do estupro e feminicídio, questionando se tais atos refletem uma fragilidade masculina que busca se impor de maneira violenta.
Tivemos também o manifesto da FEBRAPSI e do SOS Brasil em repúdio ao tal projeto de lei, o que nos ajuda a aumentar ainda mais o tom de nossa voz e nos apoiar nas palavras de Silvana Rea: “Só me resta desejar que a bancada que apoia este projeto, composta por homens e mulheres, arda no fogo do inferno”.
Estamos de acordo! Que o universo escute essas palavras, respondemos como equipe. “Mulheres sozinhas são muito vulneráveis, mulheres juntas são invencíveis”, como dito por Isabel Allende.
Concluímos o mês com o ensaio de Carolina Freitas (SBPdePA): SUMAÚMA – União da Beleza (OP 512/2024) que nos faz mergulhar nas águas do rio negro quando fala dos Abayomis como símbolo de resistência feminina, e da floresta como esse lugar de riqueza e fertilidade, onde tanto se floresce, é ao mesmo tempo é arrasada, explorada, enfrenta o desmatamento, arrasamento. É, o feminino, o tal como descrito por Freud “O continente negro” assim como o rio negro, alimenta e merece cuidado.
No Mirante, mergulhamos num outro rio, dessa vez de palavras, “A poética das cidades”. Nesse episódio contamos com o psicanalista Ricardo Trinca (SBPSP) e o artista Cauê Maia que nos convidam a refletir sobre as manifestações nas ruas que escapam do concreto e convidam os olhos a criarem pontes entre o mundo externo e a psiquê, capturando a imaginação e retirando-nos da dureza e da saturação cotidiana.
Ainda no ensaio de Carolina Freitas, após o mergulho nas águas amazonenses, a dor perante a tragédia sul. Aguas que avançam violentamente, arrastando histórias, casas e sonhos. “Piscinas cheias de ratos”, lembrando outra vez Cazuza. Torcemos por aqui, pelos gaúchos, “pro dia nascer feliz”. Afinal, o tempo não para”. E nós do OP, também não.
Um forte abraço da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb),
Ana Valeska Maia (SPFOR),
Gabriela Seben (SBPDEPA),
Giuliana Chiapin (SBPDEPA),
Gizela Turkiewicz (SBPSP),
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),
Lina Schlachter (SPFOR),
Vanessa Corrêa (SBPSP).
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Ato realizado em Brasília contra o PL-1904, junho/2024; Mídia Ninja
Categoria: Editorial
Palavras-chave: editorial, Observatório Psicanalítico, cultura do estupro, aborto, conflito Israel Palestina
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Lembramos que os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. O acesso se dá pelo link a seguir:
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