Observatório Psicanalítico OP Editorial julho/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 51

Julho/2024

O mês de julho foi um período de calmaria em nosso OP. Calmaria que pode ser o inferno de alguns navegantes, para tantos outros é tempo de alívio, de respiro, de descanso, de repouso, de abrir espaço para que a criatividade flua. Tempo de recalcular rotas e definir caminhos, seja guiados pelas estrelas, pelas nascentes e poentes que marcam a passagem dos dias ou pelas cartas náuticas deixadas por nossos ancestrais.

“Navegar é preciso. Viver não é preciso.” Nos versos do poeta, o ditado dos antigos navegadores é imortalizado e nos leva a associar por diferentes rotas, afinal viver é impreciso, e não há itinerários pré-estabelecidos a nos guiar. No fluxo do poema, Fernando Pessoa segue o próprio rumo associativo, levando a máxima dos navegantes a suas últimas consequências: “Viver não é necessário, necessário é criar.”Sem criatividade, não há vida. 

Com criatividade, nosso grupo do OP tem sido um espaço coletivo de produção, de diálogo, de manifestação e expressão. O mirante, os ensaios e as trocas que deles se desdobram têm sido como uma roda de samba, como se fôssemos embalados pelo ritmo e por um bom chope, mesmo à distância, nosso diálogo se estabelece desde os diversos cantos do Brasil e dos demais países da América Latina. 

No episódio lançado este mês do nosso podcast, Mirante, recebemos o pedagogo Paulo Focchi, fundador e coordenador do OBECI (Observatório da Cultura Infantil) e a psicanalista Marina Bilenky (SBPSP) para uma conversa sobre “A criança e as cidades contemporâneas”. Em clima de diálogo, nossos convidados ressaltam a importância do brincar e da espontaneidade da criança, e consideram a necessidade de que exista um pacto social que garanta o direito da criança de ser e estar nas cidades, atualmente estruturadas em torno do homem que produz, excluindo todos aqueles e aquelas que estão fora desta lógica. Afinal, como diz o célebre provérbio africano, “é preciso de toda uma comunidade para educar uma criança”.

“A vida não é útil”, nos adverte Ailton Krenak, alertando sobre como a sociedade pautada nos valores da produtividade e do consumo se tornou a algoz do próprio homem. A ideia de sermos úteis e produtivos a todo tempo nos retira da vida em comunidade, do convívio com as outras espécies, da interação com a Terra, casa de todos nós. 

Consideramos que a psicanálise tem algo a contribuir para as ideias para adiar o fim do mundo. Entre estas, os psicanalistas Maria Luiza Gastal (SPBsb), Cecilia Orsini (SBPSP) e Bruno Figueira (SBPSP) nos trouxeram sua perspectiva de como a psicanálise pode contribuir para esta reflexão na 76ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que teve a participação da FEBRAPSI e coordenação de Renata Arouca (SBPsb). A partir do tema “Psicanálise, arte e religião: como sustentar um futuro que nos falta?”, os colegas propõem uma visão da psicanálise implicada com o mundo em que vivemos, em diálogo com as ciências, as artes, a religião e a filosofia, numa perspectiva que possibilite ampliar o campo do conhecimento e que não se furte ao diálogo, ao debate e à sustentação do mal-estar que compartilhamos em viver em mundo esfacelado pela destruição e pelas guerras.

É a partir deste mal-estar e dos acontecimentos que nos tomam de assalto que temos criado e ocupado o espaço do OP. E estes, não dão trégua.  

O ensaio “Contra si” (OP 513/2024), de Daniel Delouya(SBPSP), traz sua perspectiva de como as nossas identidades são assentadas em nosso pertencimento étnico, do qual nenhum de nós escapa. E, para ouvir e compadecer-se a dor do outro, é preciso assumir a dolorosa postura “contra si”, que se desloca da própria identidade étnica. Assim, do lugar de um homem judeu israelense busca procurar a razão no sem-razão da guerra que segue dizimando vidas no Oriente Médio, apontando tanto a crueldade dos ataques perpetrados pelo Hamas, quanto a sanguinária resposta de Israel contra o povo palestino. Por fim, clama: “não, não, não; três vezes não. Parem, por favor! Devolvam os reféns! Alimentem os famintos! Cuidem de feridos! Reconstruam as casas e a cidade! Devolvam os refugiados! Garantam uma infância para aqueles que ainda possam desfrutá-la, enquanto os adultos de ambos os lados se esforçam para sentar juntos e conversar. Mais uma vez, aqui estou eu, o ingênuo, com a esperança.” Seriamos todos nós, psicanalistas, estes ingênuos que, com uma réstia de esperança, confiam na força criativa da palavra?

José Alberto Zusman (SPRJ) nos lembra do período coletivo traumático da pandemia, uma outra guerra, e retoma suas consequências que permanecem nos afetando, no ensaio “Sequelas emocionais da COVID19” (OP 514/2024). Considera que o distanciamento social, tão avesso à natureza humana, antes necessário para proteger-nos do vírus, tornou-se um abismo no pós pandemia. Diz: “A espécie humana talvez nunca tenha vivido um período de tamanha separação, mesmo com os dispositivos de comunicação digital que, curiosamente, pretendem nos manter próximos à distância e que tanto se desenvolveram no período pandêmico. Nunca estivemos tão tecnologicamente conectados e tão humanamente sozinhos”. Seu ensaio nos faz pensar no acirramento da polarização e na ascensão das guerras que vieram depois, sejam elas concretas ou ideológicas, e na necessidade de reencontrarmos um mundo com mais fraternidade, coletividade e confiança.

No ensaio “Tocar no sentimento” (OP 515/2024), Ana Valeska Maia Magalhães (SPFOR) retoma os passos e o deslumbramento de Freud em Paris. Cidade que encantou o mundo todo na recente abertura dos jogos olímpicos. Neste mesmo dia, o Brasil se despedia do poeta, cordelista e xilogravurista pernambucano José Borges, que costumava dizer que o importante era “tocar no sentimento do povo”. A autora assim descreve a experiência estética de assistir à abertura: “Abandonar o estádio, ocupar a cidade com apresentações artísticas nas ruas, nas águas do Sena, nos telhados, nas sacadas. Foi um espetáculo de encher os olhos, não somente pela ousadia estética, mas sobretudo pela diversidade que compôs a cerimônia, todas as músicas, danças, corpos e origens se encontraram em Paris (…) Algo se enredou no peito, como o reacender de uma chama de esperança.”

A chama olímpica de Paris tocou em nosso sentimento, talvez seja este o efeito do “espírito olímpico” tão invocado nos últimos dias. Chama, aliás, que se mantém acesa numa enorme pira em formato de balão, iluminando o céu da cidade luz, com um fogo sem combustão, movido a água e energia elétrica. Novos tempos em que o clássico lema da Revolução Francesa, “Liberdade, igualdade, fraternidade”, é complementado pela diversidade, tanto na abertura quanto na participação dos atletas nos jogos. Testemunhamos a primeira olimpíada com paridade de gênero, fato que é replicado pela delegação brasileira, representada nos jogos por 276 atletas que participam em 39 modalidades, que acompanhamos com esperança e alegria, na expectativa de belos momentos como aqueles ressaltados por Ariana Marinho da Silva (SBPSP) no ensaio “Jogos oníricos” (OP 261/2021) sobre as olímpiadas de Tóquio, relembrado pela equipe do OP em nossas redes sociais. Aqueles jogos, realizadas em meio à pandemia, sem público ou torcida presente, foram um alento em meio a tantas perdas que vivenciamos globalmente em consequência da COVID19.

Com os jogos ainda em andamento, celebramos a participação das atletas brasileiras da ginástica artística, Rebeca Andrade, Flávia Saraiva, Jade Barbosa, Júlia Soares e Lorrane Oliveira, que conquistaram um emocionante e inédito 3º lugar por equipes, nos presenteando com um lindo show de ginástica e uma bela demonstração de sororidade feminina. 

As olímpiadas trazem em si este clima onírico de suspensão de conflitos, tanto que durante os jogos da antiguidade, era decretada uma trégua olímpica em que as guerras eram suspensas para que as competições acontecessem. Esta trégua, embora idealmente ainda exista no acordo entre países participantes da ONU, há muito não tem sido respeitada. A ideia de paz e de igualdade entre os povos propagada pelas autoridades na abertura dos jogos de 2024, é apenas uma ideia, uma utopia. Mesmo a noção de que os participantes que chegaram lá competem por igual cai por terra quando assistimos aos barcos das grandes potências econômicas mundiais com centenas de atletas desfilando pelo Sena, enquanto muitos países carecem de recursos básicos para o treinamento e preparação dos atletas, quando não para garantir a viagem e estadia de seus representantes. Não é de hoje que os jogos se tornaram palco de disputas pelo poder.

Nossa tarefa é conciliar o aspecto festivo e inebriante que é disseminado pelas massas nos momentos em que nossos olhos e corações estão voltados a nossos atletas, com a realidade das disputas políticas que seguem conforme o mundo gira e não dão trégua, teimando em nos retirar da calmaria.

Neste sentido, julho foi um mês que movimentou os lugares de poder em várias partes do mundo. Na dança das cadeiras dos parlamentos francês e britânico, as eleições que ocorreram em ambos os países no início do mês dão notícias que nenhum jogo está perdido antes do fim. No Reino Unido, o partido trabalhista, de centro-esquerda, venceu com ampla maioria e retoma o poder após 14 anos. Na França, uma reviravolta, garantida pela coalizão de uma frente ampla entre esquerda e centro, surpreendeu o país nas eleições legislativas, num cenário que previa uma possível vitória da extrema direita. Nos Estados Unidos, que se preparam para eleições presidenciais ainda este ano, o atual presidente Joe Biden renunciou à sua candidatura em favor de sua vice, Kamala Harris. O movimento é uma tentativa do partido democrata de conter um novo mandato de Trump, que levaria o país uma vez mais ao extremismo.  

Na América Latina, com apreensão, acompanhamos as eleições presidenciais na Venezuela. Após um período eleitoral com candidaturas adversárias obstruídas e acusações de aparelhamento e manipulação do Conselho Nacional Eleitoral, Nicolás Maduro se declara eleito ao 3º mandato consecutivo, sem, no entanto, publicar as atas eleitorais ou a contagem total dos votos. Tanto a comunidade internacional quanto cidadãos venezuelanos que vivem no país ou fazem parte da diáspora, que conta com mais de 7 milhões de pessoas, denunciam situações de violência e abuso de poder pelos políticos do governo, demonstrando a fragilidade deste processo eleitoral. Entre aqueles que denunciam, recebemos o comunicado de nossos colegas psicanalistas da Sociedade Psicanalítica de Caracas, a quem somos solidárias.

A democracia é um sistema imperfeito, sem sombra de dúvidas. No entanto, insistimos em dizer e acreditar que é a única alternativa viável quando se busca uma sociedade mais justa e igualitária. E como toda obra inacabada, a democracia precisa ser construída, conquistada e defendida todos os dias, a muitas mãos. Toda forma de extremismo gera consequências nefastas para o povo de um país por muitas gerações e deve ser repudiada.

Não há trégua olímpica nesta luta.  

Com afeto,

Equipe de curadoria do OP

 Beth Mori (SPBsb),

Ana Valeska Maia (SPFOR),

Gabriela Seben (SBPDEPA),

Giuliana Chiapin (SBPDEPA),

Gizela Turkiewicz (SBPSP),

Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),

Lina Schlachter (SPFOR),

Vanessa Corrêa (SBPSP).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Postada no Instagram de Flávia Saraiva @flavialopessaraiva  https://www.instagram.com/p/C-ETt8CiZ-k/?igsh=YzNyZXRvNTl0aHd6

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Jogos Olímpicos, Esporte, Política e Democracia 

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Categoria: Editoriais
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