Observatório Psicanalítico OP Editorial agosto/2024

Observatório Psicanalítico

Observatório Psicanalítico OP Editorial

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 52

Agosto/2024

“Eu não posso fazer uma festinha porque isso é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar”, disse Carolina Maria de Jesus em seu livro Quarto de despejo (1960). Ela era uma mulher negra, periférica, mãe sozinha, catadora de lixo, que relatou em seu diário as agruras de ser quem era em um Brasil que, até os dias de hoje, ainda invisibiliza tantas e tantos. 

No mês de agosto de 2024, no entanto, houve festa feminina e negra. Pela primeira vez em mais de cem anos de participação, a delegação olímpica do Brasil teve uma maioria de mulheres e, não só isso: elas subiram mais ao pódio. Ganhamos quatro medalhas de ouro, três delas conquistadas por mulheres negras. As mulheres brasileiras negras, com as mãos, pegaram o sol.

Iniciamos com a conquista da judoca negra Beatriz Souza. Em entrevista, ela mandou recado: “mulherada, pretos e pretas, é possível”. 

Depois, chegou a vez do ouro de Rebeca Andrade, que se tornou a maior atleta olímpica do Brasil entre mulheres e homens. Aline Restano (SPPA), homenageou a ginasta em seu ensaio: “Rebeca: a nova paixão nacional”, e falou da saudade que o povo brasileiro estava de “uma espetacular pessoa comum”. Ela ressaltou que “em um período do mundo no qual prevalece os contatos por interesse, frases prontas, especialistas de vídeos de vinte segundos, lacradores e perfeitas articulações da fala, Rebeca simplesmente é ela.”  

Rebeca, após sua vitória, exaltou sua negritude e falou da importância de ser “mais uma referência negra para todas as crianças e adultos”. Ela disse ter tido como referência Daiane dos Santos. Por sua vez, Daiane afirmou que Rebeca é uma “nação negra”.

Por fim, aos pés da Torre Eiffel, a dupla de vôlei de praia Ana Patrícia Silva Ramos e Duda Lisboa ganhou ouro. Ana Patrícia também é negra, e disse: “É uma honra porque a gente sabe das dificuldades. Ser mulher já é um desafio, ser uma mulher negra a gente sabe que fica ainda mais difícil. Acho que aqui é um espaço gigantesco para falarmos das nossas lutas, mas também para a gente mostrar as nossas conquistas. Porque a gente sabe de todas as batalhas que a gente já travou, trava e ainda vai travar.”

As esportistas foram enaltecidas por Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) em seu ensaio “Pássaros com asas de lantejoulas”. Helena defendeu que “há algo contagiante nessas heroínas que nos ensinam tanto sobre aquilo que é digno de estar no Olimpo. Estamos todos fartos de semideuses, mas essas atletas chegam a um lugar, entre o céu e a terra; é preciso reverenciá-las. Um mundo tão cindido, tão polarizado, no meio de tanta dor, tantas guerras, que ainda sabe jogar, perseverar, lutar, e isso comove.” 

Fazendo um percorrido sobre fatos marcantes nos Jogos de Paris, Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP), em seu ensaio “Pílulas olímpicas”, ressaltou que “muitos destes atletas são provenientes de classes socioeconômicas menos favorecidas, tendo que lutar com sérias dificuldades para atingir o status atual,” o que traz à pauta a discussão sobre a importância de políticas públicas de incentivo ao esporte. Rebeca Andrade e Beatriz Souza, por exemplo, vieram de projetos sociais. 

As Olimpíadas também foram marcadas por outra conquista importante: pela primeira vez, atletas puderam contar com um berçário para amamentarem e cuidarem de seus filhos. A iniciativa surgiu após a mobilização de esportistas que enfrentam desafios para conciliar a maternidade com a carreira esportiva. 

Sobre a dificuldade, temos o relato da atleta brasileira de atletismo Flávia Maria de Lima, que expôs que temia que o seu ex-marido utilizasse a sua participação nos Jogos de Paris para conseguir a guarda definitiva de sua filha de 6 anos. No passado, ele alegou que as viagens que a atleta precisou realizar para competir eram prova de abandono materno.  

Outro grande debate que surgiu durante os Jogos de Paris foi sobre a liberação das boxeadoras Imane Khelif, da Argélia, e Lin Yu-ting, de Taiwan, para competir no boxe feminino. A discussão abordou a regulamentação dos esportes que geralmente divide homens e mulheres em categorias binárias. Cientistas argumentam, no entanto, que a biologia do sexo em si é complexa e não é exclusivamente binária. 

Se o sexo biológico não é exclusivamente binário, o gênero também não o é. 

Pensando sobre essa questão, e colocando a psicanálise para trabalhar, o episódio lançado este mês do nosso podcast, “Mirante”, recebeu a comunicóloga Gui Teixeira e o psicanalista Rodrigo Lage (SBPSP) para conversar sobre Sexual, sexo e gênero. Entre outros pontos, a dupla convidada refletiu sobre como um regime binário da diferença sexual pode contribuir para uma patologização dos corpos. 

O término dos Jogos de Paris apontou para o futuro nos Estados Unidos, onde acontecerão as Olimpíadas de 2028. Nesse país, em agosto, aliás, despontou um aumento do otimismo democrata com a entrada de Kamala Harris para a corrida presidencial. 

Na primeira noite da Convenção Democrata, Michelle Obama, uma importante liderança feminina negra, apoiando a candidatura de Harris, anunciou que a esperança estava voltando. Em sua marcante fala, entre outros temas, ela destacou a importância de um compromisso coletivo para combater o racismo.  

Kamala Harris já faz história sendo a primeira mulher negra a ser nomeada candidata à presidência dos EUA. Em seu discurso, ela abordou, entre outros temas, os direitos reprodutivos da mulher e comprometeu-se com o combate à proibição do aborto. 

Aqui no Brasil, no entanto, o assunto ainda é alvo de possíveis retrocessos. 

Dados recém compartilhados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) denunciam a aceleração dos registros de estupro entre crianças de até 4 anos, violência que ainda é subnotificada em nosso país. O documento ainda traz que a maioria dos casos reportados está na faixa entre 10 e 14 anos, o que aumenta as possibilidades de uma gravidez infantil. 

Lembramos que o projeto de lei 1904/2024 que equipara ao crime de homicídio o aborto após a 22ª semana de gestação possivelmente será analisado nesse segundo semestre. Nós, da equipe editorial, reiteramos que a aprovação deste projeto representaria um retrocesso nos direitos de meninas e mulheres. Com ele, entendemos que haveria um fortalecimento da cultura do estupro, o que causa impactos emocionais profundos em toda a sociedade.

Outro tema trabalhado por Harris na Convenção de Chicago foi sobre os atuais riscos à democracia: há um crescimento da extrema direita no mundo.  

Marcella Monteiro de Souza e Silva (SBPSP), em seu ensaio “Un souffle, um respiro”, alertou “A direita radical tem o ódio como projeto político. Projeto cuja centralidade é a construção da ameaça, do perigo do outro. (…) Sabemos que o ódio é um poderoso instrumento para criar comunidade e sensação de pertencimento, pois favorece um laço libidinal de identificação entre todos os ‘iguais’ que compartilham o ódio ao mesmo alvo. Assim, cria-se uma ‘comunidade’ que divide a sociedade, pois funciona na lógica binária do ‘se você não é nós, você é contra nós.’”

As vitórias dos Partido Trabalhista (Reino Unido) e a Nova Frente Popular (França) são um sopro de esperança, mas sabemos que a atenção permanente é necessária. E é o que os britânicos estão fazendo.

Em agosto, milhares de manifestantes antirracistas foram às ruas do Reino Unido após ameaça de protestos da extrema direita. Na ocasião, um jovem britânico, filho de imigrantes de Ruanda, realizou um ataque a facas em aula de dança sobre a cantora americana Taylor Swift. Três meninas foram mortas. 

Os números de casos de violência contra a mulher, aliás, estão crescendo no Reino Unido. A polícia britânica decretou estado de emergência nacional. O Ministério do Interior do Reino Unido afirmou que a misoginia será abordada de forma semelhante ao extremismo de direita ou islâmico. 

Ainda sobre o fortalecimento da extrema direita no mundo, a psicanalista argentina Mónica Vorchheimer (APdeBA), em seu ensaio “Como é possível que, nesta situação terrível, ainda continue a ter tanto apoio?”, trouxe reflexões sobre os motivos pelos quais fatos horrendos que o mundo tem vivido, tais como os efeitos do atual governo argentino em seu país e a guerra de Gaza, ainda têm aprovação. A psicanalista apontou para a questão do fanatismo, e propôs que a psicanálise poderá nos prover instrumentos na medida em que formos “capazes de abrigar dúvidas para nos prevenirmos contra pensamentos absolutos e a vontade de impor verdades únicas. Racismos, fanatismos, messianismos, violências, constituem forças, atratores para as massas.” 

Sobre intolerâncias como racismo e homofobia, aqui no Brasil, recebemos a notícia do suicídio de um jovem negro e homossexual, estudante cotista de uma escola de elite paulistana. Até quando, afinal, perderemos jovens inseridos em ambientes excludentes, opressivos e desumanizantes? Qual a nossa responsabilidade coletiva no que ocorreu?

Outro fato que chamou a nossa atenção foi sobre o Nordeste novamente sendo alvo de ataques. Diante da notícia de que as cem escolas públicas do país com melhor desempenho educacional nos anos iniciais do ensino fundamental são todas do Nordeste, foi divulgada uma imagem, na Folha de São Paulo, de um ônibus escolar estacionado em uma área com vegetação seca e algumas casas simples. A imagem denotava miséria e atraso.  

Lenira Vasco (SPRPE), em seu ensaio “Aquele aplicativo…”, defendeu: “determinar a imagem do outro é, sim, uma forma de dominação. Ainda que não tenha sido feita conscientemente, a escolha da foto é o produto de um sistema de valores,” e questionou: “até quando seremos nós e os outros? Até quando teremos tanta dificuldade com a existência do que não somos nós?” 

Consideramos a discriminação contra nordestinos um tema pertinente inclusive entre nossas federadas: como temos tratado as nossas diferenças regionais? Que esforços temos feito para incluir psicanalistas dos mais diversos Estados brasileiros em nossos eventos, publicações e gestões? Como está o compromisso com a formação de psicanalistas em Estados ou regiões onde ainda não chegamos? Há algum planejamento nesse sentido?

Assim como Mónica Vorchheimer, também desejamos que psicanalistas possam fazer ouvir diferentes vozes, e fazemos coro ao seu convite para que nos encontremos em outubro no Congresso da FEPAL, no Rio de Janeiro, para discutir intolerância, fanatismo e realidade psíquica. 

Terminamos o nosso editorial com a nossa consternação diante dos recentes acontecimentos relativos aos nossos vínculos com o meio-ambiente. Como diria Kopenawa, os pés do sol pisaram intensamente a floresta: em agosto, o nosso país registrou recorde de incêndios. O pantanal, a Amazônia e o cerrado estão ardendo em fogo, e a previsão é que o pior ainda está por vir. Historicamente, o pico da estação seca é o mês de setembro. Fatores como a mudança climática e o fenômeno El Niño contribuem para o quadro, mas nada disso estaria ocorrendo sem a ação humana. Enquanto investigações são conduzidas para averiguar se os focos de incêndio são criminosos, habitats são destruídos, animais são carbonizados, comunidades locais sofrem, e os nossos céus ficam esfumaçados e avermelhados. 

Como é possível? Alguma ideia para adiar o fim do mundo?

Com um forte abraço,  

Equipe de curadoria do OP

Beth Mori (SPBsb),

Ana Valeska Maia (SPFOR),

Gabriela Seben (SBPDEPA),

Giuliana Chiapin (SBPDEPA),

Gizela Turkiewicz (SBPSP),

Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),

Lina Schlachter (SPFOR),

Vanessa Corrêa (SBPSP).

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

Imagem: Foto: Editora Malê/Divulgação.  

Carolina Maria de Jesus é a autora de “Quarto de Despejo”. 

 

Categoria: Editorial

 

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Jogos Olímpicos, Extrema Direita, Racismo, Meio-ambiente. 

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Categoria: Editoriais
Tags: editorial | extrema-direita | Jogos Olímpicos | meio-ambiente | observatorio psicanalitico | Racismo
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