Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 48
Abril/2024
No último dia 31 de março, o golpe militar de 1964 completou 60 anos. Um golpe de Estado que depôs o presidente eleito, João Goulart, e deu início à ditadura civil-militar que vigorou no país por 21 anos. Ao longo de pouco mais de duas décadas, a presidência da república foi ocupada sucessivamente por militares, e levou o país a uma nova ruptura democrática.
Durante esses anos, imperou no Brasil uma atmosfera de medo, paranoia e perseguição, deixando marcas traumáticas e um legado sombrio à nação. Em 1968, com o decreto do AI-5, o país viveu um dos períodos mais duros e restritivos do regime. Entre as medidas adotadas, a censura à liberdade de expressão foi uma das mais marcantes. Obras culturais foram vetadas ou precisaram de autorização do governo para circular. Se acusadas de serem de mal gosto ou de “ferir a moral e os bons costumes”, eram censuradas. Para burlar os censores, artistas usavam metáforas e jogos de palavras para mascarar as críticas sociais, como a canção “Apesar de você”, de Chico Buarque, que em um primeiro momento passou pela censura, pois se acreditou que a letra falava de conflitos entre um casal, até que mais tarde acabou sendo proibida de tocar nas estações de rádio. Outras músicas populares como “Vaca profana”, de Caetano Veloso, e “Cálice”, escrita por Gilberto Gil e Chico Buarque também foram restringidas, dentre tantas outras canções de artistas consagrados, como Geraldo Vandré com a emblemática “Pra não dizer que não falei de flores”, considerada um hino da resistência contra a ditadura. Apesar da opressão, a pulsão de vida resistia por meio da arte e por caminhos sublimatórios, driblando a mortífera ditadura.
Atingido pela censura e pela impunidade, os efeitos nefastos deste período reverberam até hoje no país. Com a ascensão da extrema-direita, vimos uma expressiva camada da população clamando por intervenção militar e a volta da ditadura. O sinistro 8 de janeiro de 2023, data da invasão dos três poderes em Brasília, marcou uma nova tentativa de golpe que, apesar de mal sucedida em seu objetivo principal, deixou rastros de destruição e violência por todos os lados. Este evento colocou sob investigação o ex-presidente, que não concordou com o resultado das urnas com a eleição de Lula. O envolvimento de militares na tentativa de golpe colocou em questão o papel das Forças Armadas no ordenamento institucional do país.
No último dia 8 de abril, o STF decidiu que as Forças Armadas não têm atribuição de poder moderador, e que a Constituição não permite intervenção militar. Outra notícia, menos comentada na mídia, mas muito importante, foi a de que a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania concedeu, no dia 2 de abril, os benefícios da anistia aos povos Krenak e Guarani-kaiowá, duas comunidades indígenas que foram torturadas e perseguidas durante o período de ditadura militar. Essa reparação histórica abre caminhos em direção ao rompimento do silêncio, fantasma que segue assombrando nossa jovem democracia, com impactos subjetivos muito profundos. Homens, mulheres e crianças foram torturados e subjugados de maneira cruel durante a ditadura, e os responsáveis por tais atos não foram devidamente responsabilizados. Do pacto de silêncio fez-se o esquecimento, a negação da memória.
Com Freud aprendemos que é preciso recordar para não repetir. O que é suprimido na memória retorna como sintoma, como retorno do recalcado. Por isso a importância da narrativa, do reconhecimento dos traumas sofridos, para que se abram caminhos de elaboração.
Nesta direção, o primeiro texto publicado no mês de abril, de Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ), intitulado “Sobre os ossos dos mortos e a memória dos vivos” (OP 486/2024), trouxe a questão da memória que, mesmo recalcada, continua a produzir efeitos. Por isso a importância de narrar, contar a história, permitindo buscar e ampliar sentidos. Liana traz essa ideia para pensar que aquilo que não é falado limita a capacidade de pensar e de saber, e o que é desmentido implica em um não reconhecimento da situação traumática, em uma recusa da realidade. Para a autora, essas situações promovem um arrasamento da alteridade. Liana traz ainda neste ensaio questões históricas, como o genocídio indígena e a escravização dos africanos que aqui chegaram, fatos cruéis que compuseram a formação da identidade do país. A sociedade brasileira foi forjada a partir de privilégios para os poderosos, violência para os pobres e um imenso abismo social, e infelizmente seguimos perpetuando esse sistema desigual e, ao mesmo tempo, perverso. Liana afirma que “tudo isto nos revela a atualidade que a violência organizada de forma sistematizada durante os 21 anos de ditadura militar (financiada, mais uma vez, por grandes empresários nacionais e estrangeiros) continua a produzir. Desde então a extrema direita vem conquistando corações e mentes de muitos. Aproveitando-se do desamparo que deixa, à margem do sistema, milhões de brasileiros, mobilizando defesas arcaicas de adesão ao líder”.
Na sequência, o texto de Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP) “31 de março de 1964” (OP 487/2024) também trouxe fatos relacionados ao regime de exceção que perdurou no país. O autor aponta em seu ensaio que, mesmo após a redemocratização, não houve um empenho maior em apurar os crimes cometidos durante o regime militar. Diferentemente da Argentina e de outros países da América Latina, o Brasil não investigou, condenou e responsabilizou os militares pela conduta cruel e transgressora, preferindo adotar uma postura mais branda, que acabou por favorecer os assassinos. Julio retoma o episódio da invasão dos três poderes em Brasília, em 2023, e reitera que os problemas não serão resolvidos se o país deixar de apurar com rigor a responsabilidade dos militares de alta patente envolvidos nesta tentativa de golpe. O autor tece críticas a algumas posturas tomadas pelo presidente Lula, dentre as quais a de vetar manifestações que fizessem alusão ao 31 de Março, tanto aquelas que se colocassem a favor da ditadura quanto às de repúdio. Afirma que “a reavaliação dos tristes episódios ocorridos durante a ditadura seria importante como um tipo de vacina para prevenir tentativas similares no futuro, tal como o malogrado acontecimento de Oito de janeiro. A atitude de passar pano para os militares provoca descontentamento para setores que apoiam Lula, configurando um possível equívoco político a ser corrigido”.
O ensaio de Valton de Miranda Leitão (SPFOR), intitulado “Tânatopolítica ou Matança Autorizada” (OP 488/2024) trouxe reflexões sobre a condição do humano, quando o mesmo regride “ao mais exacerbado individualismo narcísico”, o que se reflete na quebra do pacto civilizatório, tal qual ocorre atualmente na Faixa de Gaza. Tânatopolítica é o termo usado por Valton para descrever a atuações políticas que se dão em prol da destruição e do morticínio: “o trágico, em todas as guerras, é que o ocupante do poder na tânatopolítica, se sente autorizado a mentir conforme a fórmula de Goebbels (…) O mais grave de tudo isso é que a paranoia redentora e purificadora está chegando ao poder nos países ocidentais ditos democráticos, usando os instrumentos constitucionais da democracia”, alerta o autor.
O ensaio de Luciana Saddi (SBPSP) sobre o longa-metragem “Zona de Interesse”, dirigido por Jonathan Glazer, também trouxe à tona as tendências destrutivas do ser humano. O filme, vencedor do Oscar de melhor filme internacional, retrata a rotina de uma família alemã chefiada pelo comandante de Auschwitz Rudolf Höss, que reside em uma ampla e confortável casa, vizinha do campo de extermínio. Enquanto a família desfruta de seu florido jardim, sons de tiros e gritos vindos do campo são ouvidos, mostrando a cisão psíquica individual e coletiva produzida pelo nazismo. A autora nos convoca a pensar, a partir do filme, até que ponto nos parecemos com o comandante Höss. Como humanos, somos capazes de exercer nossa violência e indiferença em relação ao outro, mas seremos também capazes de estabelecer empatia tal qual a menina que, no filme, esconde frutas para que os prisioneiros as encontrem, ainda que corresse o risco de ser descoberta e morta? Luciana conclui o ensaio com uma importante reflexão: “Muitas vezes, psicanalistas e artistas atuam como a brava garotinha: furam zonas de interesse, colocam alimento em campos desolados, tecem redes simbólicas com ideias e sentimentos, trazem alguma luz e esperança para a terra arrasada. Que a brava garotinha continue a nos inspirar!”.
Flávio Gosling (SBPSP) em seu ensaio intitulado “Contracapas: o avesso do cuidado” (OP 490/2024) aborda sobre a adolescência nos tempos atuais a partir de sua escuta na clínica. A censura ao livro de Jeferson Tenório “O avesso da pele” em algumas escolas públicas levantou um debate sobre os conteúdos consumidos pelos jovens de hoje e suas repercussões internas. O livro de Tenório foi acusado de conter palavras de baixo calão, consideradas inadequadas e, por isso, inapropriadas para os jovens por um grupo de conservadores composto por políticos, pais e educadores. Claramente, a intenção de censurar o livro encobre a sua verdadeira razão: a obra trata sobre racismo. Flávio comenta que em sua experiência com jovens na clínica percebe o quanto os mesmos padecem dos mais diversos sofrimentos e dificuldades para lidar com este mundo enlouquecido. O autor argumenta que, se os jovens fossem educados a ler mais, certamente isso se refletiria em uma ampliação do seu mundo interno, criando novas possibilidades para lidar com os sofrimentos. Para Flávio, a Psicanálise deveria dialogar mais com pais e educadores para pensar nas formas de cuidado com os adolescentes, já que “há estilos de repressão e censura que podem ser devastadores”. O autor afirma ainda que “impedir a literatura e queimar livros, a história já mostrou muito bem que não adianta. A própria Psicanálise sofreu diretamente com isto. Já tentaram nos chamar de charlatões e imorais, e nazistas botaram fogo em livros psicanalíticos na tentativa de impedir a Psicanálise de avançar. Felizmente ela resiste”.
Interessante notar como, ainda que indiretamente, os textos conversam entre si sobre temáticas que nos contam sobre o quanto hoje, apesar de termos caminhado tanto em direção ao desenvolvimento, ao avanço da ciência e do pensar, ainda enfrentamos ideias retrógradas, censura e autoritarismo, tal como na época do nazismo e da ditadura.
O texto escrito por Marina Bilenky (SBPSP) e pela jornalista do UOL Thaís Bilenky “A dor e o sofrimento da falta de representação política das mulheres brasileiras” (OP 491/2024) denuncia os impactos dessa ausência na sociedade como um todo. O caso de uma menina de 12 anos que engravidou de um homem de 20 em Minas Gerais ilustra o que as autoras pretendem problematizar. Condenado a cumprir pena de mais de onze anos de prisão por estupro de vulnerável, o homem recorreu, e a segunda instância entendeu que não houve crime. Mais tarde o caso acabou indo parar no STJ, e a ministra Daniella Teixeira argumentou a favor da condenação já que houve violência e o Estado deveria proteger a adolescente, posicionando-se contra a maioria de seus colegas, homens, que acabaram absolvendo o estuprador. Marina e Thaís mostram dados que apontam que as mulheres ocupam somente 38% das vagas de magistratura em todo o país: “a conclusão é óbvia. As mulheres estão subrepresentadas na Justiça brasileira. As mulheres negras ainda mais. E esse dado tem consequências políticas, mas também causa impactos subjetivos para cada mulher brasileira”, afirmam as autoras.
Em mais um ensaio inédito intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” (OP 492/2024), frase polêmica do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, mas que ajuda a entender as dificuldades que temos com a diversidade cultural, Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ) reflete sobre os diferentes modelos de relação social. Exemplifica através do termo “cunhado” usado pelos indígenas para se referir a alguém com quem se quer ter uma relação neutra ou amigável, enquanto nós usamos o termo “irmão”. Segundo Liana “quando dizemos “irmão” para um não-parente, e quando o indígena diz “cunhado”, nós estamos dizendo coisas opostas mas no mesmo sentido, ou, inversamente, coisas semelhantes mas com sentidos opostos. Nossos conceitos de relação social são diferentes e, consequentemente, são diferentes as subjetividades forjadas nessas matrizes sociais”. Os europeus que aqui chegaram consideraram os indígenas menos iguais, e por isso os mataram, escravizaram e subjugaram. Apesar de tantos ataques, mortes e a considerável diminuição de seu território, a população indígena resiste. A autora comenta também sobre a obra da artista, professora e ativista Glicéria Tubinambá, que busca recuperar os mantos Tupinambá que foram levados pelos europeus e que hoje estão expostos em diversos museus da Europa. A recomposição do mundo Tubinambá está na base do trabalho desta artista, que almeja reparar a cultura indígena, roubada e fragmentada pelos colonizadores. O ensaio de Liana nos leva a pensar em outras formas de estar no mundo, em diferentes subjetividades, e a necessidade de aprender a conviver com elas de forma respeitosa.
O último ensaio publicado no mês de abril, de Graziella Comelli da Silveira (SBPdePA) intitulado “Liberdade e Democracia: A inquietante luta na Psicanálise e na vida” (OP 493/2024) trouxe inquietações da autora sobre as lutas pela democracia e liberdade, propondo um olhar ampliado sobre essas questões, que nos são tão caras enquanto cidadãos e psicanalistas. Graziella estende o debate para a Psicanálise, a fim de pensa-la extramuros, no resgate profundo do reconhecimento das diferenças. Em um dos trechos de seu texto, a autora ressalta: “Considero importante trazer referências que estão fora do corpo teórico da Psicanálise para pensá-la além muros, e aproximá-la da vida das pessoas, da cidade e do mundo. Entendo que seus principais conceitos só puderam nascer a partir dessas andanças inquietas de analistas que estavam escutando sujeitos em seus consultórios, mas também estavam em um espaço não neutro no mundo. E tal luta por democracia e liberdade só é possível nessa fronteira, entre o singular e o coletivo. Pensar a fronteira como lugar fértil para que o novo possa surgir e o inquietante se manifestar me parece um horizonte viável, no sentido da resistência da Psicanálise, assim como de sua renovação”.
Em abril publicamos também o 7° episódio da 4ª temporada “O sexual na Polis” do podcast Mirante. Para esse programa convidamos a arquiteta, urbanista e professora da USP Regina Meyer para conversar com a psicanalista Magda Koury (SBPSP) sobre “A cidade como palco da dança da libido com a destrutividade”. Ambas debateram de forma aprofundada sobre as transformações nas cidades e seus impactos em diversas esferas. A cidade é um espaço que delineia as subjetividades, mas também é afetada por elas. O diálogo, conduzido por Beth Mori, foi bastante fecundo e proveitoso, gerando diversos comentários em nosso grupo de e-mails e nas redes sociais. Luciana Saddi, comentou que “o Mirante e o OP tem a propriedade de dar voz ao grupo, da voz retornar ao grupo e ao mesmo tempo destacar as contribuições individuais sem perder de vista que estamos todos juntos”. O Mirante está disponível em todas as plataformas de podcast.
No #tbt do instagram relembramos os textos “Café com Musk ou café sem Musk? Considerações sobre a expropriação da informação no meio digital” (OP 314/2024) de Eduardo Rocha Zaidhaft (SBPRJ) e “E os bebês? O que a psicanálise tem a dizer sobre as intervenções no tempo inaugural do psiquismo” (OP 405/2024) de autoria da Comissão da infância e adolescência da Febrapsi, composta por psicanalistas de diversas instituições.
A nossa curadoria reitera o compromisso do OP de fazer circular a palavra e o pensamento de nossos psicanalistas sobre os impactos que os acontecimentos da vida cotidiana produzem em cada um de nós. Ficamos contentes com a riqueza dos debates suscitados através dos textos que nos são enviados e das repercussões que o nosso podcast Mirante tem gerado. Com isso, reforçamos o convite para que os novos (e também os antigos) membros das sociedades enviem suas produções para a nossa curadoria.
Encerramos este editorial com a esperança de que a psicanálise, longe de tudo explicar, possa oferecer ferramentas para nomear o que não pôde ser dito e trazer à tona o que permanece oculto. Que possa acolher o silêncio e transformar a dor em palavra. E que possa ressignificar rupturas e recompor as marcas traumáticas.
Nas lembranças, os mortos estarão sempre vivos. E essa é a maior prova de resistência, pois a memória é indestrutível!
Em homenagem a todas as vítimas da ditadura, das guerras e das violências cotidianas, relembramos a canção considerada um marco da resistência cultural brasileira, o “hino da anistia”, composta por Aldir Blanc e João Bosco, e eternizada na voz de Elis Regina:
“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar”.
(O bêbado e o equilibrista)
Seguimos!
Um forte abraço da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb),
Ana Valeska Maia (SPFOR),
Gabriela Seben (SBPDEPA),
Giuliana Chiapin (SBPDEPA),
Gizela Turkiewicz (SBPSP),
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP),
Lina Schlachter (SPFOR),
Vanessa Corrêa (SBPSP).
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: A letra original de “Cálice”, Gilberto Gil e Chico Buarque (1973), censurada pela ditadura
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Ditadura 1964, Golpes, Censura e Resistência
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