
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
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Colegas,
No dia de hoje, marcado pela grande mobilização nacional convocando a população brasileira a dar um basta ao feminicídio, o Observatório Psicanalítico publica uma série especial de ensaios escritos por colegas homens da FEBRAPSI/FEPAL/IPA.
São textos que interrogam a formação da masculinidade, os pactos silenciosos entre homens, as marcas culturais que atravessam o desejo e a violência, e a responsabilidade ética que cada um de nós carrega no enfrentamento desse sofrimento que é coletivo.
Publicaremos ao longo do dia, em sequência, os textos que já chegaram para compor um coro — múltiplo, implicado e corajoso — de homens psicanalistas tomando a palavra diante do acontecimento. E a ideia é seguir na publicação dos textos que chegarem ao longo da semana. Aguardamos seu texto. É só enviá-lo para o e-mail da curadoria do OP: [email protected]
Que estes textos possam ampliar a reflexão, convocar outros homens à fala e sustentar o compromisso da psicanálise com a vida, a democracia e a dignidade das mulheres
Curadoria do Observatório Psicanalítico – FEBRAPSI
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Machilismo, um horizonte ético masculino
Avelino Neto – SPBsb
Quando menino, Rodrigo escutava, como um eco persistente, que deveria “se comportar como homem”. A frase — meio ordem, meio feitiço — carregava um patrulhamento moral feroz. Ser homem significava calar o choro, disfarçar o medo, fingir certezas. Sentimentos comuns a qualquer criatura eram interditados pela exigência de uma masculinidade endurecida.
Rodrigo cresceu sob esse imperativo. Tentou se encaixar, resistiu como pôde, anestesiou-se quando necessário. Às vezes cúmplice, outras vítima, carregou culpas, silêncios e vergonhas que o acompanhariam até a maturidade.
Já com os cabelos brancos, começou a interrogar o destino de sua sensibilidade — aquela que, no quintal da infância, fora reprimida como fraqueza. Foi então que se perguntou: se o feminismo representa, entre tantas coisas, uma tomada de consciência histórica e política das mulheres sobre suas dores, condições e potências, o que poderia surgir, de modo análogo, do lado dos homens?
Foi nesse ponto que lhe ocorreu um nome: machilismo. Estranho, provocativo. E, ainda assim, necessário.
Ao contrário do que o nome poderia sugerir, o machilismo de Rodrigo não reivindicava um “direito dos homens” à moda reacionária. Não era resposta ao feminismo, muito menos seu espelho invertido.
O machilismo se colocava como um movimento ético de auto questionamento masculino, uma tentativa de interrogar os modos pelos quais os homens se constituem, amam, adoecem, ferem e são feridos.
Era, sobretudo, uma aposta: a aposta de que os homens poderiam deixar de usar a masculinidade como armadura e passá-la a reconhecer como história — história a ser revista, e não naturalizada.
Rodrigo imaginou alguns princípios, sempre provisórios, sempre revisáveis:
Reconhecimento da violência estruturante da masculinidade tradicional, com seus pactos de silêncio, ritos de exclusão e fobia à vulnerabilidade.
Abertura ao afeto, à dúvida e ao cuidado como formas legítimas e potentes de presença no mundo.
Interrogação permanente do privilégio masculino, inclusive nas esferas íntimas: o desejo, o poder de nomear, o medo de ser recusado.
Aliança ética com o feminismo, não por apropriação, mas pela escuta e pelo deslocamento: sair do centro, desfazer protagonismos.
Criação de novos laços entre homens, baseados no testemunho e na escuta, e não na competição, humilhação ou desprezo mútuo.
Era um esboço de ética, não um sistema; um convite, não um catecismo.
Rodrigo sabia que o machilismo carregaria tensões inevitáveis com o feminismo.
Como evitar que fosse absorvido como variação simpática do velho machismo?
Como impedir que se tornasse escudo contra críticas feministas — ou, pior, instrumento de redenção sem mudança?
Para ele, o desafio era transformar a tensão em tensão ética, não em oposição.
O machilismo só faria sentido se se deixasse atravessar pelo feminismo, sem tentar domesticá-lo. Não seria equilíbrio de forças, mas escuta sem garantias: estar em relação com a diferença sem pretender assimilá-la ou traduzi-la em termos confortáveis.
Ao final de suas reflexões, Rodrigo não imaginava o machilismo como movimento de massas.
Via-o como modo de ser e modo de resistir à forma dominante do masculino.
Uma travessia simultaneamente singular e coletiva.
O horizonte ético masculino não seria “tornar-se um homem melhor”, mas tornar-se um homem outro:
— um homem que chore sem vergonha,
— que cuide sem se imaginar herói,
— que escute sem se defender,
— que ame sem conquistar.
Talvez esse homem ainda fosse ficção — mas ficção necessária, como toda utopia ética.
Se um dia o machilismo ganhasse corpo, que nascesse do chão rachado onde os homens tropeçam em si mesmos, e não do pódio onde se declarariam já convertidos.
E, por um instante, Rodrigo sorriu: talvez estivesse finalmente desaprendendo a ser homem para começar, quem sabe, a se tornar humano.
Tomando por analogia a ideia de um Saber entendido como orientação ética, não repressiva, podemos reconhecer, no campo das relações de gênero, ao menos quatro disciplinas que operam como norteadoras de condutas e modos de existência: machismo, femismo, feminismo e machilismo.
São disciplinas tensionadas entre si, expressões de tentativas humanas de responder às dores, desigualdades e disputas que atravessam corpos, afetos e laços.
São também linguagens éticas inacabadas, por meio das quais buscamos compreender o que é ser homem, ser mulher, ser outro, ser com.
— O machismo é estrutura de dominação.
— O femismo, às vezes, surge como seu espelho invertido, podendo reiterar assimetrias.
— O feminismo, com força crítica singular, desconstrói normatividades e inventa sentidos.
— O machilismo tenta reinvestir o masculino, não como reação ao feminismo, mas como abertura relacional, afetiva e histórica.
O mais interessante, porém, não é sua oposição, mas sua possível transdisciplinaridade.
Pô-las em relação — sem fusão, sem borramento, sem hierarquia — talvez permita a criação de novos lugares possíveis para sujeitos de todos os gêneros.
Nesse campo cruzado, o machilismo funciona como ponto de inflexão: reconhece a violência do masculino hegemônico, mas não se encerra na denúncia; propõe o risco do cuidado, da dúvida, do desarmamento simbólico.
Uma ética que autoriza o homem a sair das defesas identitárias, do mandato viril, da rigidez subjetiva.
Uma ética em que o feminino é reconhecido sem ser imitado ou combatido.
Uma ética onde força e sensibilidade convivem, e onde o outro começa no próprio corpo e na própria história.
Talvez, pensava Rodrigo, este seja o sentido último do machilismo: não fundar mais uma identidade, mas abrir brechas — brechas pelas quais o humano por-vir possa finalmente passar.
Rodrigo nunca fundou movimento, partido ou grupo. Dizia que não havia homens suficientes dispostos a abrir mão dos privilégios que o machismo lhes concedia — privilégios que, no fundo, eram também prisões.
Um dia chuvoso, já no ocaso da vida, um velho amigo lhe perguntou por que ele nunca dera seguimento à ideia do machilismo como movimento.
Rodrigo tirou o chapéu de palha, descalçou as botinas gastas e respondeu:
— Porque Freud, num sonho, me antecipou a morte anunciada da proposta: pelo terror mútuo à castração, machistas e femistas jamais aceitariam a transdisciplinaridade que conteria os impulsos de uma guerra sem fim — com suas tragédias e seus prazeres perversos.
Dizem que, pouco depois, mudou-se para uma cabana simples à beira do Rio das Almas, no interior de Goiás. Morava ali com cinco cães vira-latas, quatro gatos igualmente independentes e um papagaio que o saudava todas as manhãs:
— E então, velho… sonhou o quê hoje?
Palavras-chave: Femismo, Feminismo, Machismo, Machilismo, Sonhos
Imagem: A reprodução proibida. 1937. René Magritte.
Categoria: Política e Sociedade;
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.
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