
Colegas,
No dia de hoje, marcado pela grande mobilização nacional convocando a população brasileira a dar um basta ao feminicídio, o Observatório Psicanalítico publica uma série especial de ensaios escritos por colegas homens da FEBRAPSI/FEPAL/IPA.
São textos que interrogam a formação da masculinidade, os pactos silenciosos entre homens, as marcas culturais que atravessam o desejo e a violência, e a responsabilidade ética que cada um de nós carrega no enfrentamento desse sofrimento que é coletivo.
Publicaremos ao longo do dia, em sequência, os textos que já chegaram para compor um coro — múltiplo, implicado e corajoso — de homens psicanalistas tomando a palavra diante do acontecimento. E a ideia é seguir na publicação dos textos que chegarem ao longo da semana. Aguardamos seu texto. É só enviá-lo para o e-mail da curadoria do OP: [email protected]
Que estes textos possam ampliar a reflexão, convocar outros homens à fala e sustentar o compromisso da psicanálise com a vida, a democracia e a dignidade das mulheres
Curadoria do Observatório Psicanalítico – FEBRAPSI
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Masculinidade em prosa sem verso
Celso Gutfreind – SBPdePA
Esta prosa ainda é breve, porque talvez lhe falte lugar de fala.
E já era tempo de falar.
É tempo de falar.
Essa prosa tenta chegar ao poema materno de onde veio (e tudo veio de lá) como um prato quase feito em que depois cuspiu, cospe ainda.
Ingrata(o), com seu pé quebrado, ele(a) não chega ao poema e sai quebrando outros pés para que não dancem.
Uma dança bem dançada assusta.
Essa dança bem dançada o assusta.
Um mal-estar de patriarcado inconformado que não a deixa ir adiante até o respeito e a alteridade, a dança com o outro.
Masculina, prosa perdida no tempo, não havendo suportado o novo lugar do feminino.
Deslocou-se, fez sintoma, mal-estar sob forma de violência, de tantos conteúdos inseguros.
A macheza era casca.
O masculino, o verdadeiro sexo frágil.
De frágil a ignóbil, assassino.
Sem sins suficientes em seu arcabouço, não suporta um não, logo fere e mata.
Fere, sim.
Mata, sim.
Envergonho-me, envergonha-nos com essa fantasia de que envergaria diante de um poder compartido.
Fantasiando, envergou de verdade.
Já não sabe perder, já não sabe ganhar.
Só sabe que não sabe e é preciso romper com o silêncio, ou seja, falar.
Deixar que pensem, que falem, que digam.
Desde os bebês, punindo severamente os adultos que não tiveram essa oportunidade.
Sentir-pensar-falar, essa tríade que toda psicanálise tenta resgatar na luta entre a vida e a morte até o dia – utopia? – de reencontrar o poema materno e, finalmente, saborearcom gratidão o prato do começo que matou no peito o seu arcabouço.
Enquanto isso, devolve a mais fina e potente poesia a quem já ocupa o seu merecido e verdadeiro lugar:
“Que sólida armadura,
São Jorge,
que brioso cavalo
– branco, empinado –
que longa a lança
(símbolo viril)
quanta fúria
quanto ódio
para enfrentar o temível dragão
de bocarra salivante
que uma gentil donzela
com mão suave
leva para passear docilmente,
como se fosse um cãozinho de colo.
Aquilo que os homens matam com violência
as mulheres domesticam com doçura.”
(A Sedução – São Jorge e o dragão, Paolo Uccelo, poema de Cristina Peri Rossi, tradução de Ayelen Medail e Cide Piquet)
Palavras-chave: Masculino, feminino, Feminicídio;
Imagem: São Jorge e o dragão. Têmpera. Paolo Uccello. 1470. Galeria Nacional, Londres.
Categoria: Política e Sociedade;
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.
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