Observatório Psicanalítico OP 641/2025 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

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Colegas,

No dia de hoje, marcado pela grande mobilização nacional convocando a população brasileira a dar um basta ao feminicídio, o Observatório Psicanalítico publica uma série especial de ensaios escritos por colegas homens da FEBRAPSI/FEPAL/IPA.

São textos que interrogam a formação da masculinidade, os pactos silenciosos entre homens, as marcas culturais que atravessam o desejo e a violência, e a responsabilidade ética que cada um de nós carrega no enfrentamento desse sofrimento que é coletivo.

Publicaremos ao longo do dia, em sequência, os textos que já chegaram para compor um coro — múltiplo, implicado e corajoso — de homens psicanalistas tomando a palavra diante do acontecimento. E a ideia é seguir na publicação dos textos que chegarem ao longo da semana. Aguardamos seu texto. É só enviá-lo para o e-mail da curadoria do OP: [email protected]

Que estes textos possam ampliar a reflexão, convocar outros homens à fala e sustentar o compromisso da psicanálise com a vida, a democracia e a dignidade das mulheres

Curadoria do Observatório Psicanalítico – FEBRAPSI

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Entre mulheres, entre homens

Fauzi Palis Júnior – SBPSP

Cresci como único menino entre treze mulheres. Meu irmão viria quase dez anos depois, de modo que por muito tempo fui o único homem-criança num mundo de mães, irmãs, tias, primas, avós. Estava entre elas, mas não com elas, não do mesmo modo. Havia uma maneira integrada de agir que eu observava sem poder habitar inteiramente. Como quem olha pela janela uma sala aquecida.

Aprendi ali, sem saber que aprendia, que a paciência cabe em todo momento. Não sei se isso é uma virtude ou uma ferida. Talvez seja as duas coisas. A paciência das mulheres: aquela que sustenta, que espera, que suporta. Há algo nessa paciência que salva. E há algo nela que mata, lentamente, por dentro, quando se torna a única resposta possível.

Na rua, os meninos. As brincadeiras, os grupos, o barulho que os meninos fazem quando estão juntos e não precisam provar nada a ninguém, exceto que sempre estão provando. E as meninas, que ficavam difíceis de aproximar. Faziam coisas de meninas: um território interditado, ou talvez protegido.

Eu sentia algo no corpo que não sabia nomear. Era medo de rejeição. Alguns meninos pareciam não ter esse medo, ou sabiam escondê-lo melhor, ou haviam recebido alguma instrução que eu não recebi. Olhando para trás, percebo que a masculinidade não me foi transmitida como herança segura, mas como enigma. Algo a ser decifrado na solidão e talvez esse seja o único modo de recebê-la.

Porque o que se transmite de pai para filho, afinal?

Meu pai trabalhava muito. Era ausente em casa, presente nas viagens. Quando saíamos de férias, ele me levava aos lugares. Queria me levar. Lembro de uma cena que ficou: estávamos para sair, e um tio o chamou. Disse que eu não iria. Meu pai não respondeu. Vi, com essa clareza impiedosa que as crianças têm, que ele não teve força para dizer que me queria junto.

Não me defendeu. Não me afirmou. Não por falta de amor, tenho certeza disso. Mas por falta de algo que talvez ele também não tivesse recebido: a autorização para sustentar seu desejo diante de outro homem. A permissão de ser frágil sem deixar de ser. O direito de querer sem precisar vencer.

Há uma ferida que se transmite assim, de pai para filho, pelo que não se diz. E às vezes penso que toda violência masculina começa muito antes da violência, começa nesse silêncio inaugural, nessa impossibilidade de habitar a própria vulnerabilidade sem que ela seja vivida como catástrofe.

O primeiro ato de violência que se exige de um menino não é contra as mulheres. É contra si mesmo. Aprende-se cedo a usar uma máscara, e a palavra já está embutida ali: masculinidade. Aprende-se que certos sentimentos não cabem, que certas expressões não passam, que a ternura precisa encontrar disfarces aceitáveis para sobreviver.

O que o menino perde nesse processo? Perde uma parte de si que não desaparece, apenas se enterra. E o que está enterrado não morre; fermenta.

Na clínica, escuto. Escuto mulheres que falam de violências que não deixam marcas visíveis: a violência do domínio silencioso, a que se esconde na economia do casal, a que se traveste de proteção ou de ciúme. Escuto homens e neles, às vezes, uma brutalidade que se desconhece como tal. Uma certeza de direito sobre o outro que nunca foi interrogada. Um desabamento que acontece quando a imagem de si se rasga, e não há nada por baixo senão o vazio e a fúria.

Escuto também e isso é o mais difícil de formular, algo que se repete nas mulheres. Um desamparo antigo. Uma cultura que ensina a suportar, a esperar, a não partir. A paciência que cabe em todo momento. Há algo nisso que excede a culpa individual, que antecede cada história singular, que vem de longe, tão longe que parece natureza quando é história.

Mais de cem anos atrás, um homem negro brasileiro escreveu no Correio da Noite: Deixem as mulheres amarem à vontade. Não as matem. Era Lima Barreto. Era 1915.

Em 2024, quatro mulheres foram assassinadas por dia no Brasil. Nada mudou o suficiente.

O feminicídio nos confronta com o insuportável. Mas antes do feminicídio há um longo corredor de violências menores que preparam o caminho. E antes desse corredor, há a formação dos homens. O modo como aprendemos a desejar, a temer, a calar. A impossibilidade de reconhecer o outro como outro, não como extensão, não como posse, não como espelho que deve devolver a imagem que precisamos ver.

Não me excluo disso. Não sei me excluir. Carrego algo dessa herança, ainda que em formas que prefiro não ver. E talvez seja justamente isso que a psicanálise ensina: que o que não queremos ver é o que mais nos constitui.

Escrevo porque o silêncio dos homens sobre o que nos constitui como homens é parte do problema. Não a única parte, mas uma parte. Escrevo porque a fala implica, e a implicação é o único caminho que conheço em direção a alguma transformação. Não a transformação grandiosa, redentora. A outra: a que acontece devagar, numa análise, numa amizade, num momento em que se consegue, finalmente não reagir.

E escrevo porque meu pai, naquele dia, não conseguiu falar. Alguma coisa em mim ainda tenta, depois de tantos anos, dizer o que ele não pôde. Não para corrigi-lo. Para continuar.

Palavras-chave: Feminicídio, Masculinidade, Ferida Transgeracional, Transmissão Intergeracional, Falta Básica

Imagem: Edward Hopper – Office in a Small City (1953)

Categoria: Política e Sociedade; 

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.

Os ensaios são postados no site da FEBRAPSI: Psicanálise e Cultura: Observatório Psicanalítico. 

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Tags: Falta Básica | Feminicídio | Ferida Transgeracional | masculinidade | Transmissão Intergeracional
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