Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
_____________________________________________________________________________________
Colegas,
No dia de hoje, marcado pela grande mobilização nacional convocando a população brasileira a dar um basta ao feminicídio, o Observatório Psicanalítico publica uma série especial de ensaios escritos por colegas homens da FEBRAPSI/FEPAL/IPA.
São textos que interrogam a formação da masculinidade, os pactos silenciosos entre homens, as marcas culturais que atravessam o desejo e a violência, e a responsabilidade ética que cada um de nós carrega no enfrentamento desse sofrimento que é coletivo.
Publicaremos ao longo do dia, em sequência, os textos que já chegaram para compor um coro — múltiplo, implicado e corajoso — de homens psicanalistas tomando a palavra diante do acontecimento. E a ideia é seguir na publicação dos textos que chegarem ao longo da semana. Aguardamos seu texto. É só enviá-lo para o e-mail da curadoria do OP: [email protected]
Que estes textos possam ampliar a reflexão, convocar outros homens à fala e sustentar o compromisso da psicanálise com a vida, a democracia e a dignidade das mulheres
Curadoria do Observatório Psicanalítico – FEBRAPSI
_______________________________________________________________________________________
Feminicídios: Cadáveres ocultos em minha mente
Hemerson Ari Mendes – SPPel
Há alguns meses, uma de tantas ondas de feminicídio que invadiram as mídias perfurou a barreira protetora da minha mente, alcançando algo que há décadas permanecia encapsulado. Eu tinha cerca de 11 anos — talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. Era uma quarta-feira vadia, meio de tarde. Como de hábito, estávamos no Campo do Frásio, dono do bolicho que servia como espaço de jogatina e venda de bebidas aos adultos nos finais de semana e que, no meio da semana, transformava-se em um imenso maracanã (apesar da acentuada descaída em diagonal) para as crianças do Jardim Sabará — bairro pobre, mas não violento — na Ponta Grossa da minha infância.
Apesar do algariamento da partida, um estampido estranho capturou a atenção de todos. Instintivamente, olhamos para o lado. A uns 50 metros, uma mulher caída; ao lado, um homem guardava a arma e se afastava com placidez, como quem acabara de cumprir uma missão outorgada pela lei dos homens. Alguém, mais atento, disse: ele atirou nela!
Algo me diz que fiquei paralisado e não me aproximei da mulher. Provavelmente o medo — da morte, do corpo, do homem. Nos fragmentos recém-resgatados pela consciência, lembro que a notícia logo inundou a vizinhança: eram um casal em processo de separação.
Minha prodigiosa memória para fatos triviais não foi capaz de manter o trauma à tona. Não foi totalmente suprimido, mas aparecia e desaparecia, dissociado do impacto de presenciar um assassinato que recém (ou ainda não) ganharia o nome que a socióloga sul-africana Diana Russell propôs: feminicídio (1976). Coincidentemente, o mesmo ano do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, em nome da famigerada “defesa da honra”.
Naquela semana recente, o país orbitava em torno do assassinato de uma enfermeira grávida de oito meses; de uma menina de 12 anos deixada na calçada; de dois homicídios seguidos de suicídio; de uma mulher trans; e do podcast sobre o playboy pernambucano com histórico de estupros e violências. O turbilhão — como um novo estampido traumático — despertou minha consciência semicomatosa.
Brinco que fui alfabetizado por duas literaturas: as revistas Placar, do meu pai, e a literalidade da mitologia bíblica, da religiosidade da minha mãe. Ali, as narrativas eram apresentadas como história literal da humanidade — e, sem perceber, naturalizavam a lei do deus/homem como ordenadora da vida e, sobretudo, da mulher.
Essa impregnação simbólica não é unilateral: a própria narrativa bíblica nasce de sociedades patriarcais e, ao mesmo tempo, as reforça, numa circularidade que molda imaginários, justificativas morais e afetos masculinos. E este mesmo padrão se repete em diversas tradições antigas e atuais.
Entre essas narrativas, a que mais me atravessou foi a da mulher de Ló que — notem, sem nome próprio — transforma-se em estátua de sal por olhar para trás. A leitura literalista criminalizava o simples gesto humano de não abandonar o que se ama, convertendo curiosidade, vínculo e memória em desobediência punível. A mensagem era clara: a mulher que deseja, escolhe ou olha para trás deve ser petrificada.
Outros episódios reforçavam essa moralidade:
– o teste da água amarga que decide a culpa da mulher suspeita (Num 5);
– o sacrifício da filha de Jefté, ratificado por voto ao próprio Deus (Jz 11);
– o estupro e esquartejamento da concubina do levita, usada politicamente como mensagem (Jz 19).
Não cito esses exemplos para atacar a Bíblia, mas para reconhecer o quanto a literalidade patriarcal dessas narrativas — assim como de tantas outras tradições culturais — impregna a formação afetiva e moral masculina, oferecendo justificativas simbólicas para a violência, o controle, o silenciamento e a culpabilização das mulheres. A lista é longa, e suas reverberações, profundas.
Sabemos que esse modelo de alfabetização intelecto-afetiva segue se reproduzindo. Talvez os feminicídios não estejam necessariamente aumentando; talvez estejam, enfim, mais visíveis.
Poucas semanas depois, ainda sensibilizado pela minha retomada de consciência, recebi uma mensagem da Marina, minha primogênita. Falava da satisfação e do alívio com o resultado de um júri no qual atuou como Promotora de Justiça, no mesmo Paraná da minha infância. A sentença: condenação por feminicídio e ocultação de cadáver. Ela estava realizada com o trabalho — tinha convicção da culpabilidade e havia acompanhado de perto a dor da família.
Para familiares, a condenação é equivalente ao sepultamento perversamente negado: triste, mas fundamental para seguir o processo de elaboração. Condenações raramente transformam réus; mas libertam os sobreviventes.
Na época, o país assistia a três produções que giravam em torno da mesma ferida: o desaparecimento do corpo. O caso Eliza Samudio, Volta, Priscila e Ainda Estou Aqui. Nos dois primeiros — assim como no júri — as vítimas eram mulheres; no filme de Walter Salles, que aborda a ocultação do cadáver de Rubens Paiva, a vítima era um homem. Mas o fio é o mesmo: a perversão do poder que coisifica corpos e apaga existências.
Ocultar um cadáver é desumanizar em última instância. É negar luto, memória e elaboração. É retirar da vítima o direito simbólico de existir. É marca de quem não reconhece alteridade e pune com morte aquilo que ameaça seu narcisismo.
Por muito tempo, como tantos homens, eu não enxergava a linha que liga o feminicídio explícito às suas sutilezas — ou grosserias — cotidianas. Essa linha era, em mim, um cadáver oculto: presente, mas não visto; percebido, mas não reconhecido.
Interromper uma mulher com mais facilidade do que um homem; moralizar seus comportamentos; patologizar suas indignações; insinuar descontrole emocional; culpabilizá-las pelas inseguranças masculinas. Ou até, como há algum tempo fiz aqui no OP, invadir o campo de uma manifestação feminina com uma pauta masculina.
As mulheres do meu entorno — esposa, irmãs, filhas, colegas — tiveram papel decisivo na minha alfabetização emocional sobre a onipresença dessas ameaças: às vezes concretas; muitas vezes silenciadas como mortes em vida.
E, para ser justo com a própria mitologia bíblica, minha mãe também me apresentou Débora, Ester, Rute, Abigail — e foi ela mesma a Mulher Virtuosa de Provérbios 31, que administrava negócios, comércio e a própria sobrevivência num mundo hostil à sua condição.
Como admoestou Freud, “não devemos competir com os milagres de Lourdes”. Por outro lado — e demorei a compreender isso — talvez devamos conversar com aqueles que creem neles. O imaginário religioso é parte da tessitura simbólica profunda da sociedade; compreender sua literalidade, suas distorções e seu impacto pode ser um dos caminhos para que, entre o cobre da fé e o ouro da psicanálise, encontremos alguma forma de proteção — enfim mais justa — ao universo feminino.
Palavras-chave: feminicídio, patriarcado, trauma, literalidade religiosa e misoginia
Imagem: Indignado em Gibeá, o levita leva a sua concubina morta. Gravura. Gustave Dore
Categoria: Política e Sociedade;
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.
Os ensaios são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
No Instagram: @observatorio_psicanalitico
Se você é membro da FEBRAPSI/FEPAL/IPA e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie uma mensagem para: [email protected]
