
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
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Colegas,
No dia de hoje, marcado pela grande mobilização nacional convocando a população brasileira a dar um basta ao feminicídio, o Observatório Psicanalítico publica uma série especial de ensaios escritos por colegas homens da FEBRAPSI/FEPAL/IPA.
São textos que interrogam a formação da masculinidade, os pactos silenciosos entre homens, as marcas culturais que atravessam o desejo e a violência, e a responsabilidade ética que cada um de nós carrega no enfrentamento desse sofrimento que é coletivo.
Publicaremos ao longo do dia, em sequência, os textos que já chegaram para compor um coro — múltiplo, implicado e corajoso — de homens psicanalistas tomando a palavra diante do acontecimento. E a ideia é seguir na publicação dos textos que chegarem ao longo da semana. Aguardamos seu texto. É só enviá-lo para o e-mail da curadoria do OP: [email protected]
Que estes textos possam ampliar a reflexão, convocar outros homens à fala e sustentar o compromisso da psicanálise com a vida, a democracia e a dignidade das mulheres
Curadoria do Observatório Psicanalítico – FEBRAPSI
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A Fissura no Espelho.
Um conto
José Antônio Sanches de Castro – SBPSP
O cursor piscava na tela em branco como um metrônomo impaciente. Na outra aba, o e-mail da curadoria do Observatório Psicanalítico permanecia aberto. “O feminicídio… convoca cada um de nós”.
Afastei a cadeira, incomodado. A primeira reação foi um suspiro de cansaço. Eu, homem branco, heterossexual, analista. O que eu teria a dizer que não soasse como meaculpa performática ou teoria requentada? Eu me considerava um ‘homem gentil’, que nunca ergueu a mão, seguro nos meus acolhedores silêncios de consultório. Parecia assunto para quem lida com a brutalidade explícita.
O celular vibrou na mesa, arranhando a madeira. Era Beto. “Tô no restaurante. O vinho já tá aberto. Vem logo.”
Beto. Meu amigo mais antigo. Enquanto dirigia, flashes do tempo de colégio invadiam o carro. O cheiro de cânfora do vestiário, o som metálico dos armários batendo. Lembrei de mim mesmo aos treze anos, franzino, escondido atrás da sombra larga de Beto. Ele era o escudo que impedia que os outros me chamassem de “mulherzinha”. O preço daquela proteção parecia pouco: a validação. Rir quando ele ridicularizava alguém, concordar quando ele avaliava os corpos das meninas no pátio. Um pacto de espelhos: eu refletia a potência dele, ele garantia a minha sobrevivência.
Cheguei ao restaurante. Beto lá, sentado ao fundo, camisa aberta.
Estava se separando de Marina há dois meses.
— Senta aí — disse, enchendo minha taça antes que eu pudesse cumprimentá-lo. — Hoje precisamos beber.
De início, vi apenas um homem sofrendo. Beto tinha olheiras fundas. Falou de como a casa estava vazia, de como sentia falta do barulho das crianças.
— A Marina… — ele começou, e a voz embargou. — Eu construí tudo pra ela, cara. Tudo.
Senti compaixão genuína. Então, a memória trouxe a imagem de Marina, nítida: um churrasco anos atrás, ela radiante, contando sobre uma promoção que exigiria viagens. Beto a interrompeu na frente de todos, rindo alto: “Pra que viajar se eu banco tudo?”
Lembro: ela sorriu, um sorriso que não chegou aos olhos, mudou de assunto. Aceitou a promoção mesmo assim.
À medida que a segunda garrafa chegava, a tristeza de Beto começou a endurecer. A mágoa virou reivindicação.
— Fiquei sabendo que ela vai viajar no feriado — soltou ele, o maxilar travado. — Com as crianças. Sem pedir.
— É o fim de semana dela, não é? — pontuei, tentando manter a leveza.
— Não é questão de ser a vez dela. É o respeito. Ela acha que manda sozinha agora? — Ele se inclinou sobre a mesa, baixando num tom de segredo. — Fui lá ontem à noite. Fiquei no carro, do outro lado da rua. Só pra ver que horas ela chegava. Quero ver quem entra e quem sai.
O vinho desceu com gosto de vinagre. O ar condicionado do restaurante pareceu insuficiente. Não havia um monstro de noticiário ali. Havia meu padrinho de casamento, o cara que me emprestou dinheiro quando precisei. E, no entanto, naquelas frases, a violência pulsava. Não a do soco, a da vigilância.
Beto me olhou, esperando. Esperava o reflexo habitual. Esperava que eu dissesse “É foda, elas não sabem o que perdem”, ou que eu risse para aliviar a tensão.
O silêncio na mesa se alongou. Senti a boca seca. Medo de perder o amigo, medo de ser o “chato”, medo de trair a história que tínhamos. Mas a imagem de Marina sendo vigiada da janela de um carro me paralisou.
— Beto… — minha voz saiu falha, sem nenhuma autoridade. — Você não pode fazer isso.
Ele franziu a testa, confuso.
— O quê?
— Ficar vigiando. Ir na porta dela. Isso não é cuidado. Isso é perseguição.
Ele recuou no encosto da cadeira. O rosto, antes triste, fechou-se numa máscara de desprezo que não via desde a adolescência.
— Virou moralista agora? Esqueceu quem te protegia quando queriam te quebrar a cara na escola?
Era a fatura chegando. O velho pacto exigindo pagamento imediato: lealdade acima de tudo.
— Não esqueci — respondi, minhas mãos tremiam levemente debaixo da mesa. — Sou grato por tudo, Beto. Mas não posso brindar a isso. Se você continuar assim, vai acabar destruindo a vida dela. A sua.
Ele soltou uma risada seca, curta.
— Vocês, analistas… tanto estudo pra ficar frouxo. Mulher precisa sentir firmeza. Se não mostra quem manda, ela monta.
Não havia mais diálogo possível. Levantei-me, deixando o vinho na taça.
— Isso não é firmeza. É desespero.
Saí do restaurante sem olhar para trás, mas sentindo o olhar dele queimar minhas costas.
O trajeto de volta foi angustiante. O motor do carro zumbia com a dúvida: “Será que eu exagerei? Ele está desesperado, bêbado. Talvez fosse só bravata.” A culpa tinha uma textura áspera na garganta, uma vontade de vomitar as palavras ditas. A tentação de ligar, pedir desculpas e restaurar a ordem me acossava.
Entrei em casa no escuro. O computador ainda estava ligado no escritório. Sentei.
A tela preta do monitor refletia meu rosto cansado, distorcido pela luz ambiente. Encarei aquele reflexo. Não era mais o espelho de Beto. A imagem estava sozinha, frágil, sem a proteção da horda.
Olhei para a convocação do OP na aba do navegador. A violência não estava apenas lá fora. Ela estava na mesa do restaurante, estava também na minha dúvida no carro, na minha vontade de recuar para manter o conforto do vínculo.
Fiquei ali, imóvel. O cursor continuava piscando, indiferente à minha angústia. Fechar a aba seria fácil. Esquecer o convite, esquecer o restaurante, voltar a ser o homem gentil que não se envolve.
O reflexo na tela preta me encarava de volta.
Respirei fundo, sentindo o ar entrar pesado nos pulmões. Levei as mãos ao teclado. A frase veio não como uma tese, mas como uma confissão necessária, uma tentativa de sustentar aquela imagem rachada.
“Tornar-se homem, hoje, talvez seja suportar a angústia de trair o pacto…”
Nota do autor
Este conto nasceu de uma trama entre memória e ficção. Provocado pelo convite do Observatório Psicanalítico para refletir sobre o feminicídio, recorrendo a fragmentos de experiência vivida, testemunhos guardados e à força da imaginação para tecer esta narrativa. O que se lê aqui não é confissão literal, mas construção literária: personagens, situações e dilemas emergiram do cruzamento entre lembranças difusas, cenas presenciadas e a liberdade criativa de dar forma ao incômodo. É, portanto, um texto que habita a fronteira — entre o que foi, o que poderia ter sido e o que precisa ser dito.
Palavras-chave: Pacto fraternal masculino, Violência de gênero, Espelhamento narcísico, Trair o pacto
Imagem: foto produzida pela IA da Grok
Categoria: Política e Sociedade;
Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI), dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da FEBRAPSI.
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