
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
Carol e Raquel, fim e começo
Celso Gutfreind – SBPdePA
“O homem velho deixa a vida e morte para trás.” Caetano Veloso
Para Carolina Freitas e Raquel Zieleniec, pela tolerância com a minha intromissão pretensamente literária
Carol, uma jovem analista brasileira, visita Raquel, uma psicanalista uruguaia, de bastante idade. Ela mora na Torre A de um complexo habitacional, na frente da Rambla, em Montevideo. Encontraram-se, um dia antes, em evento da Associação Psicanalítica do Uruguai. Amor à primeira vista, para além de todas as teorias. E pouco falaram dessas, em meio aquela prática pulsante.
Raquel recebe Carol com chá, uma torta de chocolate e outra de ricota. Contemplam a Rambla, trocam impressões sobre o final do lindo dia. E falam de suas vidas. Carol conta as atividades no Brasil, que não são poucas. Raquel diminuiu o ritmo e relata, sobretudo, o que viveu, muito antes daquele encontro. Não aceita mais pacientes novos, por uma questão ética, de não poder se comprometer, devido a questões de saúde, com um tratamento que costuma ser longo. Por isso, privilegia manter os que já vem atendendo, e a participação em grupos de estudo, incluindo os de literatura, pois ela também é ficcionista, com direito a um conto dolorido sobre a morte de uma criança, na Ucrânia. Também aprecia participar de algumas conferências, especialmente aquelas em que o expositor não sabe responder as perguntas da plateia. E, como já há um encontro verdadeiro entre as duas, cada uma expõe seus pensamentos.
Carol fala do começo, com esperança. Raquel fala do fim, sem ressentimentos. Raquel se interessa pelo que Carol fala do começo. Carol se interessa pelo que Raquel fala do fim. E fala dos filhos que estão longe e pouco vêm podendo visitá-la. Depois – ela é ágil no celular – manda uma foto para a filha, onde aparece ao lado de Carol, com a seguinte mensagem: – E, como não estás podendo vir, consegui uma outra filha. Assinado: mãe.
Riem juntas. Carol pergunta se há algo que Raquel ainda deseja fazer, já que o fim não parece apressado. Raquel suspira e, depois de uma pausa bem pensada, diz que de tudo o que não vem podendo fazer, o que mais lhe faz falta é não ir a Buenos Aires ver os teatros. Está difícil deslocar-se sozinha, pois precisa recorrer ao oxigênio, em algum momento do dia. Carol conta para Raquel que a sua bisavó, tempos atrás, também recorria ao oxigênio. Então, via o seu pai levar a avó para passear no campo. Ela adorava ver os bichos, em especial os cordeiros e bezerros dando os primeiros passos. Voltava sorridente, sem recorrer ao oxigênio.
Raquel ouviu atentamente a história e a promessa de Carol, assegurando que voltaria a Montevideo para levá-la aos teatros de Buenos Aires. Alugariam um carro, com espaço para alguma bagagem e o tubo, uma espécie de remake de Thelma & Louise, mas com um final bem melhor. E muita música brasileira e uruguaia para ouvirem no caminho.
O sol levou mais duas horas para se pôr. Quando Carol perguntou por que Raquel estava mais calada, ela respondeu que a desculpasse por aquele momento solitário, depois de tanta companhia, mas é que estava voltando a sonhar. Depois, retomou alguns assuntos, entre a vida e a psicanálise. E, nessas horas em que não mais se via o amarelo das flores que Carol tinha levado para a sua anfitriã, Raquel não falou mais do fim.
Palavras-chave: Pessoa do analista, Envelhecimento do analista, Estar com, Sintonia afetiva.
Imagem: Carol e Raquel
Categoria: Instituição Psicanalítica; Cultura
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