Observatório Psicanalítico OP 632/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo

Por enquanto, ainda dói

Maria Helena Ferreira dos Santos – SBPRP

Sentada nesta cadeira, janela aberta, lá fora os pássaros ensaiam um bom dia, cada um com seu canto, movimento e escolhas, seja de um lugar para pousar, um rápido ou longínquo tempo para ficar, apreciar, desdenhar e partir.

Ora aqui, ora acolá, árvore em árvore, galho em galho, flor em flor.

No topo das paredes concretadas, com suas lanças, serpentinas e cercas elétricas limitando os acessos, contendo o outro. Ou nas venezianas, telhados, terras batidas… Ou nos asfaltos quentes e frios… Lá estão.

Seja no silêncio do momento ou no barulho que aflora o dia, marcam presença conjugando em todos os tempos a diversidade da palavra liberdade.

Como numa tela, mas em movimento, vejo-os em bando ou solitariamente riscando o céu com pinceladas rasas, profundas, finas, acentuadas, cores diversas.

Contudo, no quadro desenhado pela fresta retangular, com seus vários pequenos recortes, sinto a ausência de luz. Vejo e sinto a composição do quadro em preto e branco que, misturados, formam vários tons de cinza.

O que meu olhar anseia não é suprido pela beleza apresentada? Ou será necessária a composição de outro quadro? Criar outro desenho, com outros movimentos, outros fundos?

Do lado de cá, nesta manhã, vejo os sobrevoos num céu que se apresentou carrancudo, acinzentado, tirando o brilho do sol que, pelo horário, está se preparando para dar as caras.

Vagarosamente, a luz vai diferenciando os seus tons. Delicadamente, vai se misturando, acolhendo os que aqui e lá estão. Tornando claro o visto de outrora, compondo outros quadros. Cores vivas, reluzentes, mudando o desenhar da tela com delicados coloridos que, penso, são realçados com o passar das horas.

Que efeitos trarão para cada um, individualmente ou em grupo? Que efeitos o outro tem sobre nossas vidas?

Seja na ausência, na presença, nas decisões tomadas, no lavar das mãos, no calar diante do observado, na falta de reflexão diante do vivido por nós, pelo outro… Ontem, hoje, quiçá amanhã?

Como os sons dos pássaros a cortar o silêncio dos dias e aqueles que, na calada da noite, silenciosamente clamam, há em volta de nós um outro grupo a cantar e gritar suas dores, desalentos, a berrar sob as chicotadas do desprezo, banhados de sangue derramado pelos preconceitos, tentando chamar nossa atenção.

Até quando esses sons diversos pousarão silenciosos em vós, que, munidos da liberdade dos pássaros, poderiam fazer a diferença?

Em que momento a liberdade será realmente pensada, elaborada, vivenciada e proferida? E a carta de alforria, realisticamente, libertará a todos nós, negros e brancos? Como assim, negros e brancos? É, galera!!!

Quem disse que vós, também, neste senzalamento de nós, não se tornam encarcerados? Pois somos todos cativos do preconceito.

De um lado, o grupo que violentamente o sofre e o profere; do outro, o grupo que violentamente profere e, em seus testamentos, distribui aos seus como pedra preciosa.

Até aqueles que ignoram possuí-los são herdeiros desses preconceitos, mesmo que aparentemente a herança não se tenha destinado a eles.

Percebe-se essa herança nos gestos, falas, nos risos diante das inocentes piadas; no salário incompatível pago aos seus funcionários; na falta de empatia diante da realidade daqueles que vos servem.

Pequenos gestos repetidos automaticamente em nossa presença: travar as portas dos carros, segurar firmemente a bolsa, buscar os iguais como sinônimo de segurança, estar em lugares cercados de iguais e não se questionar sobre as ausências dos diferentes.

Ter em seus lares as mãos que balançam o berço dos seus filhos e, diante dos jornais, TVs, internet, não se sensibilizar pela vida do garoto aliciado pelo crime, tendo a vida ceifada ali, no concreto frio, sozinho, enquanto sua mãe cuida dos teus filhos, da tua casa, de você.

Não perceber e conjugar o privilégio como merecimento pela luta sofrida, pela incessante busca, pelo foco nas decisões. Méritos herdados pela pele, homologados e atualizados, de tempos em tempos, ignorando que os que junto não estão, maratonam para fugir um pouquinho deste suporte pesado usufruído por vocês para chegarem aonde chegaram.

Assim caminha a humanidade, negando o que foi herdado, usufruindo do bem e não constatando a existência dele e do outro que sofreu e sofre para manter os privilégios.

Assim como, refletindo neste momento sobre minha escrita inicial, fico a pensar como está embutida em nós a claridade como sinônimo de beleza.

O voo dos pássaros sob um céu acinzentado carecia da luz para trazer vida, beleza? Necessitar-se-ia do claro?

Sozinhos, em grupo ou em bandos, transitamos por este mundo de meu Deus e o olhar do outro é uma bússola a nos guiar, libertar, encarcerar, podar, limitar, construir, destruir, fazer sonhar, mesmo diante do pesadelo, criar galhos ante as sementes colaborativas fecundadas num solo fértil de vida, propiciando a firmeza das raízes, os brotos.

E, parafraseando o grande Milton Nascimento, em Coração de Estudante: “E há de se cuidar do broto, pra que a vida nos dê flor, flor e fruto…”

Diante das vivências dos últimos dias – o massacre no Rio de Janeiro, tendo como vítimas cidadãos dos morros do Alemão e da Penha versus os ofensores justiceiros fardados, que assemelham por demais aos capitães do mato – volto o olhar para a proximidade do feriado de 20 de novembro, “Dia da Consciência Negra e Zumbi dos Palmares”.

Fiquei a pensar: de que consciência estamos falando?

Os fatos de hoje casam-se com os de ontem. Passado e presente interligados, perpetuando as eliminações de diversas gerações do povo negro e suas peles diversas. Até quando?

Sendo a consciência vestida de seus diversos atributos, dentre os quais as interações entre as percepções externas e internas, acrescidas das vivências de prazer-desprazer, sem descontar os desconhecidos barulhentos que compõem o conjunto da obra, nos desnudando, privando-nos da harmonia, ainda assim não está subentendido que haja um conhecimento, ou pelo menos uma parcial familiaridade, do dentro-fora, de mim-e-outro, pois leva tempo vasculhar quem somos, ainda mais quando, ao redor, se prescinde de um querer.

Fico a perguntar: que consciência é essa, divorciada do pensar de todos? Que movimentos são esses, desprovidos de reflexão, que consideram somente uma parte, levando a atuações violentamente sanguinárias, repetidas e não elaboradas?

Em versos dolorosamente cantados por Elza Soares, em A carne, a dor dos cortes da vida, dos sonhos, das separações, ausências violentamente impostas, é sentida, doída até os ossos e, ao mesmo tempo, ignoradas:

“A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

E vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquiátricos…”

Lendo e ouvindo trechos da música Por Enquanto, de Renato Russo, eternizada na voz de Cássia Eller – “Mudaram as estações, nada mudou…” – penso no extermínio de nós, ainda presente, e nos entrelaçamentos com as novidades e sofisticações dos meios, muitas vezes homologados pela ancestralidade e pelo Estado.

E, ainda envolta na canção:

“Se lembra quando a gente

Chegou um dia a acreditar

Que tudo era pra sempre

Sem saber que o pra sempre, sempre acaba?”…

Acaba????

Palavras-chave: Liberdade, Preconceito, Dia da Consciência Negra, Senzalamento

Imagem: foto montagem produzida pela própria autora.

Categoria: Política e Sociedade

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Tags: Dia da Consciência Negra | liberdade | preconceito | Senzalamento
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