
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo
O Eterno Retorno de Jards Macalé
Jose Antonio Sanches de Castro – SBPSP
Há mortes que não são fim, mas transformação. Jards Macalé partiu deixando ecos que se multiplicam em ondas sonoras infinitas, como aqueles braços erguidos na praia, celebrando não a despedida, mas o encontro com a eternidade que ele sempre buscou.
“Talvez eu volte, um dia eu volto” – profecia cumprida de quem nunca verdadeiramente se foi. Porque Jards habita agora esse lugar atemporal onde residem os imortais, aqueles que fizeram da arte sua forma de resistência e da canção seu ato revolucionário. Como Orfeu descendo aos infernos para resgatar Eurídice, Jards desceu às profundezas da cultura brasileira para trazer à tona tesouros que jaziam esquecidos.
Suas parcerias eram encontros alquímicos – com Waly Salomão criou “Vapor Barato”, hino de uma geração que ousou sonhar diferente. Com Caetano, teceu diálogos onde a música popular encontrava a erudição sem perder sua alma de rua. Era o artesão das misturas impossíveis, aquele que sabia que “nossa soma de todas as coisas” era maior que qualquer parte isolada.
“Movimento dos Barcos” navega ainda em nossos ouvidos como metáfora perfeita do próprio Jards – sempre em trânsito, sempre descobrindo novos portos sonoros. Sua voz carregava a melancolia dos que conhecem demasiado a vida, mas também a ironia sagaz dos que se recusam a levá-la muito a sério. Era um flâneur musical, caminhando pelas esquinas do tempo e recolhendo fragmentos de beleza onde outros viam apenas ruína.
Na resistência cultural dos anos de chumbo, Jards não empunhava bandeiras – ele era a própria bandeira. Suas canções funcionavam como cartas cifradas, mensagens de liberdade disfarçadas em melodias aparentemente inocentes. “Gotham City” transformava o urbano em épico, o cotidiano em mitologia. Era Batman e Bruce Wayne ao mesmo tempo, herói disfarçado da música brasileira.
Agora, quando afirma que não quer “ser moderno, quero ser eterno”, compreendemos que Jards já conquistou sua imortalidade. Não a modernidade que envelhece com as estações, mas a eternidade que se renova a cada escuta, a cada novo ouvido que descobre suas canções-labirinto.
Como na psicanálise, onde o sintoma retorna transformado, Jards retornará eternamente através de cada artista que ousar misturar o erudito com o popular, o melancólico com o irônico, a resistência com a beleza. Seu legado não é monumento, mas semente – plantada no solo fértil da música brasileira, germinando infinitamente novos frutos.
“Um dia eu volto” não era promessa, era certeza. Porque quem habita a eternidade da arte nunca realmente parte – apenas muda de endereço, da matéria para a memória, do corpo para a canção.
Palavras-chave: Resistência, Alquimia, Flânerie, Eternidade, Metamorfose
Imagem: Reprodução/Instagram @jardsmacale
Categoria: Homenagem; Cultura
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